Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

18 setembro 2023

Deliberações nulas III

 

3.1.2 Alguns exemplos

Nos termos do nº 1 do art. 1432º, uma assembleia não pode deliberar sem que estejam presentes condóminos que representem, pelo menos, 51% dos votos representativos do capital investido. Este preceito legal é imperativo, visando proteger os interesses dos condóminos e regula elementos exteriores da deliberação (a forma como pode ser obtida), pelo que a deliberação tomada com desrespeito pelo mesmo cabe no âmbito do art. 294º.
 
Contudo, esta deliberação não deverá ser cominada com nulidade, mas com mera anulação, porquanto não se trata de irregularidade permanente que afecte interesses de condóminos futuros.(84) Os nºs 3 e 4 do art. 1424º são disposições especiais que afastam a regra geral da proporcionalidade prevista no nº 1 (que se apresenta como supletiva), não podendo ser derrogadas. Com efeito, estas regras acautelam “interesses de condóminos que, quando minoritários, poderiam doutro modo ver-se na contingência de ter de suportar despesas para as quais nada contribuem e das quais não podem sequer tirar proveito”. São, pois, normas imperativas, não estando na disponibilidade das partes.(85)
 
Assim, deliberações aprovadas em sentido contrário àquelas são deliberações cujo conteúdo negocial é contrário à lei e, por isso, são abrangidas pelo nº 1 do art. 280º. Não existindo outra solução legal, e tendo em conta que a aprovação de tais deliberações é suscetível de afectar pessoas que só em momento futuro farão parte do condomínio, estas deliberações deverão ser cominadas com anulidade, por força do disposto no art. 280º. O mesmo raciocínio se aplica para deliberações que regulem os encargos com inovações de forma diferente da consignada no art. 1426º. 
 
O art. 1419º/1 surge, igualmente, como norma imperativa, visando, novamente, a protecção dos interesses dos condóminos e, bem assim, o interesse geral, na medida em que “o título constitutivo é um acto modelador do estatuto da PH e as suas determinações têm natureza real e, portanto, eficácia erga omnes,”(86) oponíveis a terceiros. Assim, “a liberdade de modelação do regime da PH está fortemente condicionada não apenas pelo facto de se tratar de um direito real, subordinado ao princípio da tipicidade, mas também por razões de interesse público, designadamente decorrentes dos direitos de edificação e do ambiente, sem esquecer a necessária salvaguarda da solidariedade exigida a todos os que integram a micro comunidade interdependente”.(87)
 
Posto isto,qualquer alteração ao título constitutivo exige o acordo de todos os condóminos e a sua consignação em escritura pública. Não se abdicando do acordo de todos os condóminos, a deliberação aprovada sem o mesmo é nula, recaindo novamente no âmbito do art. 294º (forma de obtenção da deliberação)(88). As deliberações que autorizem a divisão entre condóminos das partes do edifício consideradas imperativamente comuns pelo nº 1 do art. 1421º são deliberações cujo conteúdo negocial contende com a lei e, nesse sentido, subsumem-se ao art. 280º/1. 
 
Também aqui estão em causa interesses dos condóminos cujo único desvio já vem previsto na própria lei (admitindo-se, apenas, a afectação das partes comuns ao uso exclusivo de um dos condóminos [nº 3] e nunca a sua divisão entre eles). Por isso, e por estarem em causa também interesses de condóminos futuros, estas deliberações deverão ser consideradas nulas.
 
Também as deliberações que suprimam a faculdade de qualquer condómino proceder a reparações necessárias e urgentes nas partes comuns do edifício (art. 1427º) são nulas por força do art. 280º/1, por contrariedade à lei, pondo em causa o interesse geral, na medida em que a omissão de determinadas reparações pode por em causa bens jurídicos como a integridade física de qualquer transeunte ou visitante do condomínio. 
 
As deliberações que retirem aos condóminos, no caso de destruição do edifício ou de uma parte que represente pelo menos 3/4 do seu valor,o direito de exigir a venda do terreno e dos materiais (nº 1 do art. 1428.º) ou que suprimam a possibilidade de recorrer dos actos do administrador (faculdade permitida pelo art. 1438º) são nulas por força do art. 280º/1, por afcetarem interesses dos condóminos actuais e futuros.
 
Por fim, o nº 1 do art. 1429. constitui também uma norma imperativa, ao determinar que é “obrigatório o seguro contra o risco de incêndio do edifício (...)”. Assim, deliberações que dispensem o seguro do edifício contra risco de incêndio são nulas (art. 280º/1) por porem em causa interesses gerais.

Notas:

84. Situação semelhante se verifica a propósito das assembleias das associações, verificando-se uma solução expressa no art. 177º que determina diretamente a anulabilidade de deliberações tomadas com irregularidades no funcionamento da AG. Apesar de esta previsão não existir no regime das assembleias de condóminos, a ratio legis é a mesma e, portanto, aquele art. 177º vem reforçar a cominação com anulabilidade para a situação apresentada.
85. Neste sentido, ac. TRL de 14/11/2017. Contra: Ac. STJ de 12/11/2009, referindo que “Na verdade, a norma do art. 1424º (...) é uma norma de conteúdo dispositivo e não uma norma de interesse e ordem pública que estabeleça direitos inderrogáveis entre os condóminos.”
86. Manuel Henrique Mesquita, op. cit.,p. 94.
87. Ac. TRP de 06/04/2017.

88. Neste sentido, acs. STJ de 20/12/2017 e de 22/02/2017. Contra: ac. TRL de 17/12/2015, referindo que a ofensa daquele "preceito imperativo, só afecta interesses (e interesses disponíveis) daqueles que no momentoda aprovação da deliberação eram condóminos, interesses, portanto, que, por via de regra (...) tais condóminos perfeitamente podem defender através de acção anulatória".

14 setembro 2023

Deliberações nulas II


Feito este enquadramento geral, e antes de atentarmos a casos concretos de deliberações das assembleias de condóminos, importa aferir critérios que permitam aquilatar se uma determinada norma tem, ou não, conteúdo imperativo.

Em primeiro lugar, o critério-base resulta da letra do próprio preceito. Assim, quando a norma indique expressamente que não pode ser afastada pelas partes ou preveja a invalidade do negócio quando não seja respeitada, tal indicia, desde logo, que o seu conteúdo é imperativo. “Não havendo referência expressa nesse sentido, o elemento essencial para determinar se uma norma tem conteúdo imperativo está relacionado com a identificação da natureza dos interesses protegidos. (77)”

Assim, a principal tarefa do intérprete consiste em aferir qual o interesse que determinada norma pretende proteger, podendo identificar interesses gerais – em que a norma procura defender todas as pessoas contra uma prática que as possa afectar -, interesses de terceiros–em que o objectivo é proteger todas as pessoas que integram um determinado grupo -, interesses de ambas as partes – visando a lei proteger as partes contra si próprias – ou interesses de uma das partes – em que o carácter imperativo visa a protecção da pessoa contra ela própria.(78)

Note-se que determinadas normas podem visar proteger, em simultâneo, dois ou mais destes interesses. Sandra Passinhas (79) sugere, a este propósito, a necessidade de uma interpretação sistemático-normativa, pelo que o primeiro critério a ter em consideração deverá ser atentar às normas que tutelam directamente o interesse público/geral ou que tutelam os interesses de terceiros.

Naturalmente, a verificação destes interesses em determinadas normas são fortes indicadores de que se tratam de normas imperativas e, nesse sentido, não haverá grande dificuldade na sua qualificação.

A tarefa mais complexa virá depois, quando seja necessário interpretar a deliberação de modo a concluir se o interesse protegido pela norma é afectado,(80) algo que só poderá ser feito em concreto.

Note-se, porém, que as deliberações que efectivamente ponham em causa a protecção daqueles interesses serão necessariamente nulas já que, se assim não fosse, i.e., se se cominassem tais vícios com a mera anulabilidade, o legislador estaria a deixar ao critério dos condóminos a derrogação de tais preceitos, com a não impugnação, em certo prazo, das deliberações viciadas.(81)

Por outro lado, existem preceitos legais destinados a proteger directamente os condóminos (interesses de ambas as partes ou apenas de uma delas) e é aí que se levantam alguns problemas delicados, uma vez que nem todos os condóminos ou administradores têm conhecimento suficientemente vasto da lei para conhecer todos os preceitos cuja violação dá origem à nulidade.

Sandra Passinhas defende que só serão cominadas com nulidade as deliberações cujo conteúdo fixe uma disciplina contrária àqueles, pois só nestes casos pode a posição de futuros condóminos ser afectada. Entende a autora que são os interesses destes que a lei pretende proteger (82) e, por isso, a deliberação deverá ainda ter um carácter permanente.(83)

Para nós, faz sentido que se pense de tal forma, já que os interesses dos próprios condóminos, actuais e presentes, representados, ou a quem as deliberações e o respectivo processo de formação deverão ser comunicados se encontram salvaguardados com os mecanismos de impugnação previstos no art. 1433º do CC.

Assim, em caso de dúvida, o intérprete dever-se-à questionar se uma determinada deliberação que infrinja uma norma imperativa afecta apenas os condóminos actuais ou se, pelo contrário, poderá atingir condóminos futuros, caso em que se cominará com a nulidade.

Notas:

77. Jorge Morais Carvalho, ibidem, p. 175.
78. Idem, ibidem, pp. 175 a 192.
79. Op. cit., pp. 252 e ss. Entendimento partilhado pelo ac. TRP de 27/09/2012.
80. Neste sentido, Jorge Carvalho Morais, op. cit., pp. 183 e 185.
81. Pires de Lima/Antunes Varela, op. cit., p. 448, António Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 344, Sandra Passinhas, op. cit., pp. 251 a 253 e João Vasconcelos Raposo, op. cit., p. 64. Cfr. ainda, para as sociedades, XAVIER, Lobo, Anulação..., p. 123.
82. Na esteira da doutrina de Lobo Xavier, ibidem, p. 162: “É que não pode razoavelmente contar-se com a diligência dos adquirentes das (fracções) em se informarem das cláusulas (do título constitutivo) e das deliberações em geral.”
83. No mesmo sentido, Ac. TRL de 17/12/2015.