Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

12 setembro 2023

Regras Gerais Aplicáveis às Deliberações – Maioria Simples


2.2.4 Regras Gerais Aplicáveis às Deliberações – Maioria Simples

Analisadas as excepções, atentemos agora às regras gerais aplicáveis às deliberações. Em primeira convocação, a assembleia pode deliberar, desde que esteja presente/representada a maioria simples do capital investido –quórum constitutivo (art. 1432º, nº 3). Quanto ao quórum deliberativo, a regra geral é que se reúna a maioria dos votospresentes.(40)
 
A título exemplificativo, num condomínio com vinte condóminos, em que todos eles têm igual capital investido e, por isso, igual percentagem de votos, uma deliberação, pode ser aprovada em primeira reunião se comparecerem, pelo menos, onze condóminos e todos eles votarem favoravelmente, porquanto, o princípio regra consagrado no nº 5 do art. 1432º, é o de que, as deliberações são tomadas, salvo disposição especial (as que careçam de uma maioria qualificada), por maioria dos votos representativos do capital investido (e não do presente). Não se verificando este quórum inicial, ter-se-à que avançar para uma segunda convocação.
 
Nesta factualidade, o já referido nº 4 vem estabelecer um quórum subsidiário, a respeitar numa segunda reunião: condóminos que representem, pelo menos, 1/4 do capital. A data da segunda reunião poderá constar, desde logo, da convocatória para a primeira41.Na sua falta, o legislador estabeleceu que deveria ocorrer uma semana depois, à mesma hora e local, o que deverá ficar a constar da ata da assembleia que se frustrou.A lei não prevê nenhum intervalo mínimo obrigatório entre as duasreuniões, pretendendo-se assim evitar “que a segunda convocação, em lugar de ser uma novachamada, se converta num mero prolongamento da primeira”42.Estamos perante uma matéria em que são os interesses dos condóminos que relevam e, portanto, deverão ser eles adecidir o melhor critério a aplicar perante tal situação. Não obstante, entendemos, subscrevendo o ac. STJ de 26/05/2015 (Gregório Silva Jesus),que“esse espaço de tempo não poderá ser tão curto, de algumas horas ou meia hora (...), por claramente afrontador dos limites da boa fé, uma vez que pelo conhecimento advindo da experiência do quotidiano social se sabe que, se não sempre pelo menos quase sempre, tal reduzido espaço de intervalo na prática inviabiliza a presença de quem pouco antes esteve ausente, assim como não lhe permite a reponderação da conveniência de estar presente na assembleia, e mesmo a sua preparação para nelaparticipar e assumir uma correta tomada de posição”.Asformalidadespara a convocação da segundareunião são, assim,as mesmas que as da primeira(com respeito pelo que vem previsto no n.º 1 do art. 1432.º) –com exceção da antecedência de 10dias, que neste caso não tem de ser observada.

Em segundaconvocatória, como se disse, altera-se aexigência quanto ao quorum constitutivo, passando de “maioria simples do capital investido” para “14⁄do valor total do prédio” (1432.º, n.º 4), mantendo-se o quorumdeliberativoenquanto “maioria de votosdos condóminos presentes”4344.Deste modo, recorrendo ao exemploavançado supra, uma deliberação poderia ser aprovada em segundareunião se comparecessem apenas cincocondóminos, bastando que três deles votassem favoravelmente.Coloca-se a questão de saber se é necessária a unanimidade, em segundaconvocatória,quando estejam presentes apenas doiscondóminos, representando um deles mais de 14⁄do valor total do prédio.Aragão Seia45entende que, em tal situação,estando presentes condóminos que representem, pelo menos, 14⁄do valor total do prédio, a deliberação só pode ser aprovada com o voto favorável da maioria dos condóminos presentes. Assim, não podem os votos de um só condómino formar a maioria necessária, já que ele representa apenas50% dos condóminos presentes. Significa isto que, para o autor, será necessária a unanimidade.Éda nossa opinião que existe, em torno desta questão, uma confusão quanto àquilo que é exigido em segundareuniãopara aprovação de uma deliberação. Com efeito, Aragão Seia interpreta o n.º 4 do art. 1432.º no sentido de ser necessário, como quorumdeliberativo, o voto favorável da maioria dos condóminos presenteso que, de resto, nos pareceir contrao “princípio da prevalência do voto maioritário”46.Com efeito, não é isso que a lei nos diz. É exigido, sim, reunir a maioria de votosdos condóminos presentes, o que significa que se o condómino que votou favoravelmente é proprietário de uma fração que representa mais capital investido do que a fração do outro, a deliberação haverá de ser aprovada47.Mais uma vez, o legisladortoma em consideração o elemento patrimoniale não o elemento pessoal, pelo que há que respeitar a sua opção.Importa, por último, questionar oque acontece se, mesmo numa segunda reunião, não comparecem condóminos suficientes para representar 14⁄do capital. Já sabemos que aassembleia não pode deliberar. Como resolver, então, tal situação?Aassembleia de condóminos é,antes de mais, uma assembleia de comproprietários,é o órgão de administração das partes comunsem propriedade horizontalàs quais se aplica, subsidiariamentee com as devidas adaptações, o regimeda compropriedade48.Deste modo,admite-se queo intérprete, não encontrando solução especial no regime da propriedade horizontal, possaaquirecorrer ao art. 1407.º, n.º 2, de acordo com o qual“quando não seja possível formar a maioria legal, a qualquer dos consortes é lícito recorrer ao tribunal, que decidirá segundo juízos de equidade”49.

Notas

40Não se exigem os votos favoráveis correspondentes à maioria simples do capital investido (que constitui o quorum constitutivo), “porquanto isso equivaleria a exigir uma unanimidade que a lei não impõe”. De resto, “aregra da colegialidade na formação da vontade do grupo, que constitui um princípio típico das formações coletivas, tem associado o princípio da gestão –digamos
democrática –que reclama, não a unanimidade das decisões internas, mas sim a correspondente maioria”. NETO, Abílio, op. cit., p. 698.41A ordem de trabalhos das duas reuniões haverá de ser a mesma.42LIMA, Pires de /VARELA, Antunes, op. cit., p. 446. No mesmo sentido, SEIA, Aragão, op. cit., pp. 172 e 173, defendendo, porém, que adata da segunda reunião deve respeitar um intervalo mínimo de uma semana em relação à primeira. Também o ac. TRP de 04/05/2010 (Anabela Dias da Silva) defende que a segunda reunião não pode ter lugar na data da primeira, não esclarecendo, todavia, qual o intervalo mínimo que considera justificável.Diferentemente, JOSÉ, Rosendo Dias, A Propriedade Horizontal: Comentários e Notas aos arts. 1414.º a 1436.º do C. Civil, Livraria Petrony, Lisboa, 1982,pp. 107 e 108, considerando que a lei não exige que a segunda reunião se realize em dia diferente. Ainda numa outra linha de pensamento, PASSINHAS, Sandra, op. cit., pp. 224 a 226 e ac. TRL de 31/03/2011(Márcia Portela), defendendo que não existe uma obrigação de que a segunda reunião se realize sempre com respeito pelo intervalo de uma semana, supletivamente fixado na lei, mas que também não é aceitável que a segunda assembleia esteja convocada para meia hora após a primeira.

43Abílio Neto (op. cit., p. 699) entende que a entidade convocante deverá informar os condóminos ausentes desta diminuição de exigência, contribuindo assim para o êxito da segunda reunião.44Excluem-se das exigências do n.º 4 do art. 1432.º: situações de adiamento da data primitiva por motivos de força maior ou de novo agendamento da assembleia, por necessidade de suspensão dos trabalhos que estejam a decorrer ou, ainda, por decisão unânime dos condóminos presentes e com maioria do capital, de reunir em nova data. Neste sentido, RAPOSO, João Vasconcelos, op. cit., p. 48.45Op. cit.,p. 177


46NETO, Abílio, op. cit., p. 699.47Em sentido concordante, RAPOSO, João Vasconcelos, op. cit., p. 47.48MESQUITA, Manuel Henrique, op. cit., p. 84 e acs. STJ de 09/05/1991 (Tato Marinho), 22/02/2017 (Tomé Gomes) e de 19/03/2009 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza).

49Neste sentido, LIMA, Pires de / VARELA, Antunes, op. cit., p. 447 e MILLER, Rui Vieira, op. cit., p. 273. 

08 setembro 2023

Aplicação dos nº 4 a 8 do art. 1432º


2.2.3.1 Aplicação dos nº 4 a 8 do art. 1432º

Atentando meramente ao elemento literal do art. 1432º do CC, rapidamente se pode concluir que todas as deliberações sujeitas a uma maioria qualificada têm um regime – quanto a nós, estranhamente - mais exigente do que as deliberações sujeitas a unanimidade, já que não parece ser-lhes aplicável o procedimento previsto nos nº 5 a 8 do citado art. 1432º.
 
Com efeito, Sandra Passinhas entende que não estamos aqui perante qualquer lacuna, e que, portanto, se o legislador pretendesse que tal regime fosse aplicado, tê-lo-ia referido expressamente, como fez a propósito das que carecem de unanimidade (nº 5).)36)
 
Também o disposto no nº 4, referente à reunião em segunda convocatória parece vir na sequência do nº 3, aplicando-se, à primeira vista, apenas às deliberações que careçam apenas de maioria simples.(37)
 
Não comungando de tais entendimentos, explanaremos a nossa posição com apoio jurisprudencial.(38).
 
Com efeito, consideramosque os fundamentos que levaram o legislador a estabelecer um  regime especial e, em certa medida, generoso,relativamente às deliberações que carecem de unanimidade também se impõem no que respeita às deliberações que carecem de maioria qualificada. 
 
Parece-nos, portanto, que sendo a unanimidade a exigência abstractamente mais intensa, esta se aplica a deliberações mais graves e importantes do que quaisquer outras e, portanto, por maioria de razão, havendo a possibilidade de “contornar” tal requisito deliberativo, essa possibilidade deverá ser alargada à aprovação por maioria qualificada. Senão vejamos.
 
Como ensina o ac. TRL de 15/02/2018, o regime actual foi introduzido pelo DL267/94, de 25 de Outubro sem que, contudo, tenha sido dada qualquer explicação sobre as alterações à disciplina da unanimidade no preâmbulo daquele decreto. Dali se depreende, porém, que as alterações introduzidas se deveram às mudanças sociais e do padrão típico de habitação nas cidades que resultaram na aplicação do regime da propriedade horizontal aos grandes edifícios com bem maior número de condóminos o que, naturalmente, começou a dificultar a gestão dos condomínios e a chegada a consensos. 
 
Como já tivemos oportunidade de referir, a própria participação atciva e pessoal dos condóminos nas assembleias começou a decrescer e, por isso, o legislador sentiu necessidade de introduzir algumas flexibilizações no regime. Com efeito, da leitura do preceito legal em análise se conclui que estamos perante uma norma prática, “um remédio para a possível complexidade de reunir inúmeros condóminos que pode ser um entrave real ao correcto e agilizado funcionamento de uma administração” .
 
Sucede que os nº 5 a 8 do art. 1432º  aparecem como aplicáveis apenas às deliberações que carecem de unanimidade, não mencionando nunca as deliberações que necessitam de maioria qualificada. Ora, coloca-se a questão de saber até que ponto o legislador omitiu aquelas deliberações propositadamente, criando um regime especial e exclusivo para a unanimidade, ou se, por outro lado, o legislador não previu, negligenciando as situações que carecem de aprovação por maioria qualificada. Por outras palavras, pergunta-se se estamos perante uma lacuna, a ser integrada nos termos do art. 10.º, ou não.
 
Para responder a tal questão, atentemos aos seguintes fundamentos. 
 
Em primeiro lugar, oque nos parece mais evidente: com base numa interpretação literal, verifica-se que o legislador contornou, através do nº 4 do art. 1432º, as exigências face a deliberações que carecem de maioria simples e,através do nº 5, as exigências de unanimidade (mitigada). Fica assim excluída - literalmente, reiteramos - qualquer flexibilização relativa às maiorias qualificadas, sem que exista qualquer fundamento válido que o justifique.

Por outro lado, ainda no que concerne às deliberações aprovadas por maioria simples, vem o acórdão referido supra defender, contrariamente ao que consta do seu sumário,que não é “absolutamente claro que a leitura do nº 4 do preceito se reporte ao nº 3”, i.e., que se restrinja à regra geral da maioria simples, porquanto o art. 1432º “regula todos os tipos de deliberações que podem ser tomadas”, algo que resulta, desde logo, da leitura dos nº 1 e 2 do art. 1432º. 
 
É que se as normas relativas à convocação e funcionamento das assembleias se aplicam a todas as deliberações, independentemente das exigências relativas à sua aprovação, não se avista qualquer motivo para ler o nº 4 de forma diferente. Por esse motivo, consideramos que a possibilidade de convoca ruma segunda reunião deve ser reconhecida quer se pretenda aprovar uma deliberação que careça de maioria simples, quer tal aprovação exija unanimidade ou maioria qualificada.
 
Quanto às deliberações que requerem unanimidade, note-se que o n º 5manteve tal requisito, apenas facilitando a deliberação em segunda convocatória, à qual se aplica, ao permitir que a unanimidade seja alcançada em dois momentos: um primeiro com os votos unânimes dos condóminos presentes na reunião que representem, pelo menos, 2/3 do capital investido no prédio, e um segundo momento de confirmação por parte dos restantes condóminos (os ausentes). 
 
Tal significa que o legislador teve uma preocupação especial com as deliberações que exigem unanimidade, não descurando da sua importância e gravidade quando prevê uma segunda reunião. Ora, o mesmo raciocínio se pode e deve fazer quanto às deliberações que carecem de maioria qualificada, pela importância que revestem, pelas consequências que podem implicar e porque “o fim último da lei (é) a protecção da maioria contra actuações minoritárias”.

Por todo o exposto, entendemos que estamos efectivamente perante uma lacuna legal para as deliberações que exigem maiorias qualificadas e que venham a ser tomadas em segunda convocatória, na medida em que não existe uma solução legal que indique qual o quórum deliberativo necessário.Importa agora saber como integrar tal lacuna nos termos do art. 10º, i.e., tentar perceber como é que o legislador, atendendo aos interesses em causa e à sua importância, bem como ao espírito do sistema, teria regulado a questão, não sendo, para nós, concebível que o regime a aplicar seja tão inflexível que não permita uma minoração de exigências numa segunda convocatória, nem tão brando que caia no âmbito do nº 4 do art. 1433º do CC. 
 
Com efeito, se os casos em que se exige maioria qualificada são importantes o suficiente para que não lhes seja aplicada a regra geral da maioria simples, não existe fundamento para que, perante tais casos, baste a aprovação de uma minoria de 1/4 do valor total do prédio para vincular todos os condóminos.
 
Recorrendo à analogia, e porque as razões que justificam a existência de uma solução a aplicar à unanimidade são as mesmas - ainda que num diferente grau de intensidade - que as que fundamentam a necessidade de regular o que acontece numa segunda convocatória da assembleia geral para aprovar deliberações que careçam de maioria qualificada – reitera-se, a protecção dos interesses maioritários -, tendemos a defender, à semelhança do acórdão do TRL a que vimos aludindo, que se deve estabelecer um paralelo entre as duas situações.
 
Pelo exposto, entendemos ser de manter o quórum de 2/3 relativamente às deliberações que o exijam, (39) permitindo-se, porém, que também este seja alcançado em dois momentos: num primeiro momento, bastando os votos favoráveis da maioria do capital investido e, num segundo momento, a confirmação da deliberação pelos restantes condóminos que representem a parte necessária para fazer as maiorias qualificadas exigidas, consoante o caso. 
 
Diferentemente – e ainda que a jurisprudência não resolva nem aborde este aspecto -, quanto às maiorias previstas nos arts. 1428º, nº 2, 1422., nº 2, al. d) e 1422º-A, nº 3, sendo o seu quórum deliberativo em primeira reunião menos exigente, também em segunda reunião se deve verificar uma redução proporcional. Neste sentido, sugerimos, por entendermos razoável – ainda que, evidentemente, seja meramente indicativo -, que num primeiro momento (naquela segunda reunião) devam bastar os votos favoráveis de 40% do valor total do prédio e, num segundo momento, a confirmação da deliberação pelos condóminos necessários para perfazer as maiorias qualificadas exigidas. Numa última nota, e pela sua relevância prática, referir que as manifestações posteriores dos condóminos ausentes e não representados devem, no nosso entender, seguir os termos dos nº 6 a 9 do art. 1432º do CC.

Notas

36. Sandra Passinhas,op. cit.,p. 247.
 
37. Cfr. sumário do ac. TRL de 15/02/2018, referindo que o nº 4 do art. 1432º é um regime “restrito às deliberações previstas no nº 3 do mesmo preceito”.
 
38. Além do ac. TRL de 15/02/2018, acs. TRP de 06/03/2007 e do STJ de 19/03/2009.

39. Referimo-nos aos já citados nº 3 e 4 do art. 1422º, nº 2 do art. 1424º e nº 1 do art. 1425º, todos do CC