Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

2/12/2024

Forma da procuração - VII

 

Na mesma linha, somos da opinião de que, em face do direito vigente, a forma da procuração exigível nos termos do CC quando esteja em causa a conclusão de negócios por escritura pública apenas pode ser dispensada com a actuação de um notário, porquanto o legislador só a este confiou tal prerrogativa, tendo em conta a sua condição de oficial público. (59)

Deste modo, a possibilidade conferida pelo DL 76-A/2006, de 29 de Março (60), aos advogados, aos solicitadores e às câmaras de comércio e indústria de autenticar documentos particulares e de poder fazer reconhecimentos presenciais de assinaturas em documentos (cfr. art. 38°, n° 1 (61)) não significa que os documentos autenticados ou escritos e assinados pelo representado com reconhecimento presencial por qualquer daquelas entidades possam valer como procuração para a celebração de um negócio por escritura pública.(62)

A lei é clara: só a intervenção de um notário(63), pelas razões supra expostas, permite que para a conclusão de um negócio por escritura pública seja suficiente uma procuração lavrada “por documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura ou por documento autenticado” (art. 116°/1, do CN).

Naturalmente, o legislador podia ter consagrado outras excepções legais à regra geral do art. 262°/2, do CC, outorgando, por exemplo, aos advogados, dados os especiais deveres de prossecução de fins de utilidade pública que lhes estão cometidos, a prerrogativa concedida aos notários pelo art. 116°/1, do CN; os documentos autenticados ou os documentos com letra e assinatura do representado reconhecidas presencialmente por aqueles profissionais forenses serviriam então como procuração bastante para a celebração da escritura pública.

Na verdade, se, em matéria de patrocínio judiciário, a lei confere aos advogados o poder de atestar a veracidade do mandato e a extensão dos seus poderes, estabelecendo a desnecessidade de intervenção notarial (64), a consagração daquela possibilidade seria opção igualmente legítima do legislador.

No entanto, e a nosso ver bem, não se criaram outros regimes excepcionais em matéria de actos outorgantes de poderes representativos para a conclusão de negócios por escritura pública, seguramente por relevantes motivos de segurança jurídica.

Impõe-se, por isso, a seguinte conclusão: quando para o negócio principal seja exigida escritura pública, a ausência de intervenção notarial (65) na outorga da procuração nos termos do art, 116°/1, do CN, importa a nulidade deste negócio (art. 220° do CC). Com efeito, a actuação do notário não se destina apenas a fazer prova da declaração (arti. 364°/2, do CC), antes garante a ponderação e colabora na formação da vontade do representado, podendo assim considerar-se o cumprimento do preceituado no art. 116°/1, do CN, uma formalidade ad substantiam.

Sendo a procuração nula, o notário deve recusar a celebração da escritura pública exigida para o negócio principal, pois não há outorga (válida) de poderes de representação (66). O negócio representativo só poderá ser concluído se a procuração for lavrada por instrumento público ou por documento autenticado pelo notário ou por documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura, não tendo este documento de ser escrito ou assinado na presença do notário, mas tendo o signatário de estar presente perante este no acto do reconhecimento.

Notas:

(59) Recentemente, com o DL 263-A/2007, de 23/07, a actuação do Conservador dispensa igualmente a forma da procuração exigível nos termos do CC quando esteja em causa a conclusão de (certos) negócios por escritura pública. Na verdade, este diploma, ao criar um procedimento especial de transmissão, oneração e registo de imóveis, permitiu que a compra de casa e outros negócios jurídicos relacionados com a transmissão e oneração de imóveis (v.g., a constituição ou modificação da hipoteca voluntária sobre bens imóveis — cfr. nova redacção do art. 714° do CC) fossem celebrados na CRP, dispensando-se a escritura pública (cfr. art. 8°, n° 3, do DL 263-A/2007, de 23/07).
Deste modo, para os negócios previstos pelo art. 2° do DL 263-A/2007 (vg., compra e venda de imóveis), ao eliminar-se a necessidade de actuação do notário quando o conservador intervenha, tem de passar a admitir-se que os documentos autenticados ou escritos e assinados pelo representado com reconhecimento presencial por este oficial público possam valer como procuração para a celebração daqueles negócios.

(60) No preâmbulo do DL 76-A/2006, de 29/03, afirma-se: “ o presente decreto-lei visa, portanto, objectivos e propósitos de interesse nacional e colectivo, relacionados com a promoção do desenvolvimento económico e a criação de um ambiente mais favorável à inovação e ao investimento em Portugal, sempre com garantia da segurança jurídica e da legalidade.”
Muitas das novidades deste diploma, porém, afiguram-se-nos como rudes (e perigosos…) golpes no valor da segurança jurídica. Com efeito, não compreendendo devidamente as diferenças entre as funções do notário e do conservador e não relevando as vantagens de um duplo controlo de legalidade, o legislador tornou facultativas as escrituras públicas relativas a vários actos da vida das empresas (v.g, a constituição, a alteração do contrato ou estatutos, o aumento do capital social, a alteração da sede ou objecto social, a dissolução, a fusão ou a cisão das sociedades comerciais).
Na ânsia da simplificação e da celeridade, bandeiras tão na moda, eliminaram-se a obrigatoriedade da escrituração mercantil (livros de inventário, balanço, diário, razão e copiador) e a necessidade de legalização dos livros de actas na Conservatória do Registo Comercial, medidas fortemente atentatórias da certeza jurídica, valor fundamental para a vida societária.
Por fim, o processo de cessão de quotas passou a não estar sujeito a escritura pública, sendo o registo feito por mero depósito, isto é, não há qualquer controlo formal ou material da legalidade daquele! Confia-se ao Secretário da sociedade, muitas vezes uma pessoa sem formação jurídica, o controlo anteriormente a cargo de notário e conservador…

(61) Estabelece o art. 38°, n° 1, do DL n.° 76-A/2006, de 29 de Março:
“Sem prejuízo da competência atribuída a outras entidades, as câmaras de comércio e indústria, reconhecidas nos termos do DL n° 244/92, de 29 de Outubro, os conservadores, os oficiais de registo, os advogados e os solicitadores podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos nos termos previstos na lei notarial [cfr. art. 155° e ss do CN].” (parêntesis nosso)

(62) Não é este o sentido do disposto no art. 38°/2, do DL 76-A/2006, de 29 de Março:
“Os reconhecimentos, as autenticações e as certificações efectuadas pelas entidades previstas nos números anteriores [advogados, solicitadores, etc…] conferem ao documento a mesma força probatória que teria se tais actos tivessem sido realizados com intervenção notarial.” (parêntesis nosso)
Em nossa opinião, este preceito tem apenas relevância em sede de prova do negócio, isto é, visa somente definir o valor probatório, em tribunal, dos referidos reconhecimentos, autenticações e certificações.

(63) Conforme expusemos acima (cfr. nota 59), com a criação do procedimento especial de transmissão, oneração e registo imediato de imóveis pelo DL 263-A/2007, de 23/07, a intervenção do conservador do registo predial permite que as procurações sejam lavradas por documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial de letra e assinatura ou por documento autenticado também por este oficial público, quando o negócio principal constar do artigo 2.° deste diploma e exija escritura pública.
No fundo, o legislador criou outra excepção legal à regra do art. 262°/2, do CC, conferindo aos conservadores uma prerrogativa similar à outorgada aos notários pelo art. 116° do CN: os documentos autenticados ou os documentos com letra e assinatura do representado reconhecidas presencialmente por aqueles oficiais públicos servem como procuração bastante para a celebração da escritura pública.

(64) Dispõe o artigo único do DL n° 267/92, de 28 de Novembro:
“1 – As procurações passadas a advogado para a prática de actos que envolvam o exercício do patrocínio judiciário, ainda que com poderes especiais [poderes para confissão, desistência ou transacção], não carecem de intervenção notarial, devendo o mandatário certificar-se da existência, por parte do ou dos mandantes, dos necessários poderes para o acto.
2 – As procurações com poderes especiais devem especificar o tipo de actos, qualquer que seja a sua natureza, para os quais são conferidos esses poderes.”
O DL 168/95, de 15/07, veio estender este regime aos solicitadores. Como nota Menezes Cordeiro, “ Num curioso retorno histórico, reaparecem, assim, os antigos privilégios de «fazer procuração por sua mão» que os liberais, através do Código de Seabra, haviam abolido.” Vide Menezes Cordeiro, “A Representação no Código Civil…”, cit., pág. 404.

(65) Ou do conservador, de acordo com o resultado do procedimento especial de transmissão, oneração e registo de imóveis, criado pelo DL 263-A/2007, de 23 de Julho.

(66) A escritura pública poderá ser outorgada ao abrigo do instituto da gestão de negócios, porquanto quem apresenta a procuração nula “ assume a direcção de negócio alheio no interesse e por conta do respectivo dono, sem para tal estar autorizada.” (cfr. art. 464° do CC). Neste caso, o notário deve advertir para a ineficácia do acto em relação ao dono do negócio (cfr. artigo 471.° do CC), sob pena de cometer infracção disciplinar e incorrer, eventualmente, em responsabilidade civil.

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