Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

2/08/2024

Forma da procuração - VI

 

Destarte, o legislador entende que a intervenção do notário assegura a liberdade e a ponderação do dominus e garante o esclarecimento deste acerca do sentido e alcance da procuratio, dispensando, por isso, o formalismo a que esta, de acordo com a regra geral do art. 262°, n° 2, do CC teria de obedecer, no caso de negócios representativos para os quais é exigida escritura pública.(52)

Em nossa opinião, percebe-se que a lei prescinda da exigência formal do direito substantivo relativamente à procuração, nos termos do art. 116°, n° 1, do CN: o notário é um oficial público (53) incumbido de assegurar um primeiro controlo de legalidade, podendo, enquanto delegatário da fé pública, dar garantias de autenticidade aos actos jurídicos extrajudiciais em que intervém (54).

Mutatis mutandis, na medida em que o notário intervenha, a lei dispensa a observância da regra do art. 262°/2, do CC, permitindo que as procurações sejam lavradas, designadamente, por documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura ou por documento autenticado, quando o negócio principal esteja sujeito a escritura pública. Na base da norma constante do art. 116°/1, do CN está, clara e inequivocamente, a ideia de que o notário garante a ponderação das partes e se certifica da correspondência entre a vontade manifestada e a vontade real destas, assegurando as cautelas subjacentes às exigências formais da lei substantiva.

Pelo exposto, podemos concluir pelo carácter excepcional do art. 116°/1, do CN, relativamente à regra geral estabelecida no artigo 262°/2, do CC, em matéria de forma das procurações, preceito que, por sua vez, consagra também um regime oposto ao princípio da consensualidade vigente no direito civil português (cfr. art. 219° do CC).(55)

c) Art. 116°, n° 1, do Código do Notariado e art. 38°, n° 1, do DL n° 76-A/2006, de 29 de Março

Enquanto norma excepcional, o art. 116°/1, do CN, não comporta aplicação analógica, conforme decorre do art. 11° do CC, que reza assim:

“As normas excepcionais não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva.”(56) Como ensina Baptista Machado, “é desde já claro que toda a proibição da aplicação analógica se apresenta sempre à primeira vista como algo de chocante – por contrário ao princípio da justiça – e como tal carecerá sempre por isso mesmo de uma justificação particular para poder ser aceite. Essa justificação particular só poderá encontrar-se numa necessidade premente de segurança jurídica.”(57) Continua este autor: “Há que entender este preceito [o art. 11° do CC] a partir do significado que nele se atribui à interpretação extensiva e ter presente o referido critério fun-damental: só a segurança jurídica pode justificar a não aplicação analógica de uma norma cujo princípio valorativo é de per si transponível para casos análogos.”(58) (parêntesis e itálico nossos)

Tendo presente a ratio do art. 116°/1, do CN, isto é, a segurança jurídica conferida pela intervenção notarial a justificar a possibilidade de derrogação da aplicação do art. 262°/2, do CC, não podemos deixar de concluir pela não aplicação analógica daquele preceito.

Notas:

(52) Em relação às procurações conferidas também no interesse do procurator e de terceiro, estipula-se um regime reforçado em matéria de forma (cfr. art. 116°/2, do CN, acima transcrito), porquanto o facto de serem irrevogáveis (cfr. art. 265°/3, do CC) implica maior tutela da posição do dominus.
Por maioria de razão, quem admita as procurações no interesse exclusivo do representante e/ou de terceiro, não pode deixar de concluir pela aplicabilidade daquele regime formal a estas, pois “As razões que sustentam o regime do art. 116°/2, do CN em relação às procurações conferidas também no interesse do procurador ou de terceiro verificam-se também, e porventura mais intensamente ainda, no que concerne às procurações conferidas no interesse exclusivo do procurador ou de terceiro.” Vide Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Ob. cit., pág. 219. Pelo contrário, aqueles que rejeitam a figura da procuratio na qual não exista um interesse do representado, naturalmente, não têm de “ alargar o âmbito de aplicação do artigo 116°/2, do CN por forma a abranger a procuração no exclusivo interesse do representante ou de terceiro.” Vide Pedro de Albuquerque, Ob. cit., pág. 1036.

(53) Num quadro de liberalização e privatização, como o actualmente vigente no nosso país, o notário, apesar de profissional liberal, enquadrado num contexto concorrencial, é essencialmente um oficial público, representante do Estado e elemento imprescindível, dado o seu papel na prevenção de litígios, para a paz e segurança jurídicas. Conforme se resume no preâmbulo do Estatuto da Ordem dos Notários (aprovado pelo DL 27/2004, de 4 de Fevereiro), “Com a reforma do notariado e consequente privatização do sector, os notários assumirão [assumem] uma dupla condição, a de oficiais, enquanto delegatários da fé pública, e a de profissionais liberais, desvinculados da actual condição de funcionários públicos.” (parêntesis nosso)
Para uma síntese da história do notariado, da experiência portuguesa resultante da sua recente privatização e uma comparação com outros modelos organizatórios, cfr. Joaquim Barata Lopes, actual bastonário da Ordem dos Notários, e a sua nota introdutória ao Código do Notariado Anotado – Legislação complementar e formulários, 2.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2007.

(54) Dispõe o art, 1°, n° 1, do CN: “A função notarial destina-se a dar forma legal e conferir fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais.”
A função notarial distingue-se da actividade registral, outro controlo de legalidade indispensável à segurança do comércio jurídico, porquanto aquela actua sobre a formação e exteriorização da vontade da pessoa e esta destina-se a dar publicidade a certas situações jurídicas, sendo, por isso, o seu efeito central o da eficácia perante terceiros.

(55) A distinção entre regra e excepção é eminentemente relacional. Nas palavras de Oliveira Ascensão, “ Duas normas podem estar entre si na relação regra / excepção: à regra estabelecida pela primeira opõe-se a excepção, que para um círculo mais ou menos amplo de situações é aberta pela segunda. A excepção é pois necessariamente de âmbito mais restrito que a regra, e contraria a valoração ínsita nesta, para prosseguir finalidades particulares. A regra excepcional opõe-se ao que designaremos regra geral.” Vide José de Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral, 13.ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, págs. 448 e 449.

(56) Antunes Varela e Pires de Lima esclarecem: “O recurso à analogia pressupõe a existência de uma lacuna da lei, isto é, pressupõe que uma determinada situação não está compreendida nem na letra nem no espírito da lei. Esgotou-se todo o processo interpretativo dos textos sem se ter encontrado nenhum que contemplasse o caso cuja regulamentação se pretende, ao passo que, na interpretação extensiva, encontra-se um texto, embora, para tanto, haja necessidade de estender as palavras da lei, reconhecendo que elas atraiçoaram o pensamento do legislador que, ao formular a norma, disse menos do que efectivamente pretendia dizer. Mas o caso está contemplado. Não há qualquer omissão.” Vide Pires de Lima e Antunes Varela (com a colaboração de M. Henrique Mesquita), Ob. cit., pág. 60.
Para Castanheira Neves, há “um continuum entre a interpretação e a integração”, pelo que não existe uma diferença de princípio entre interpretação extensiva e integração de lacunas através da analogia. Vide Castanheira Neves, Metodologia Jurídica – Problemas Fundamentais, Coimbra Editora, 1993, pág. 126.

(57) Vide J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, (8.ª reimpressão), Almedina, Coimbra, 1995, pág. 326.

(58) Idem, pág. 327.

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