Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

13 maio 2025

Os terraços antes e depois do DL 268/94


O nascimento do direito de propriedade na esfera jurídica de alguém rege-se pela lei em vigor à data da ocorrência dos respectivos factos constitutivos.

Com efeito, uma vez constituído o direito de propriedade sobre um bem, o direito só se extingue pelas formas previstas na lei, como vem referido no art. 1308º do CC, onde se determina que «Ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade senão nos casos fixados na lei».

Por conseguinte, o direito de propriedade no que respeita aos terraços constituiu-se de acordo com a lei em vigor à data da constituição da propriedade horizontal e de acordo com o respectivo título constitutivo.

Uma lei que altere posteriormente o estatuto das partes comuns e das partes individuais inerentes à constituição do direito de propriedade horizontal não produz «uma expropriação sem indemnização» de direitos anteriormente constituídos, antes respeita as situações já existentes e consolidadas.

Por isso, os direitos já definidos não podem ser afectados.

O que se afigura estar de acordo com o disposto na 1ª parte do nº 2 do art. 12º do CC, onde se dispõe que «Quando a lei dispõe (…) sobre (…) quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos».

Com efeito, uma lei que, posteriormente à constituição da PH, altere a definição legal acerca daquilo que é parte comum do edifício ou parte individual de um edifício construído em regime de propriedade horizontal, versa sobre um facto, ou seja, sobre a construção de um edifício com determinadas características, que o tornam apto para a constituição da PH, e versa também sobre os efeitos desse facto, isto é, sobre que partes do edifício são obrigatoriamente comuns, individuais ou livremente submetidas pelo título a uma destas situações jurídicas, pelo que a nova lei só se aplica às situações factuais que surjam após a sua vigência.

Nesta factualidade, existe uma alteração legislativa no que respeita ao art. 1421º do CC onde se definem quais são as partes comuns do edifício submetido ao regime da PH.

Até 1994, a al. b) do nº 1 do art. 1421º do CC, dispunha que eram comuns «O telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso do último pavimento»”. Posteriormente, o DL nº 267/94, de 25/10, reformulou esta norma, a qual passou a ter a seguinte redacção: «O telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fracção.»

Face à actual redacção da al. b) do nº 1 do art. 1421º, do CC, não existem quaisquer dúvidas no sentido de que os terraços são partes comuns, desde logo por se as fracções destinadas a habitação, beneficiam do uso do terraço que se situa imediatamente por cima de outras fracções, e que, por sua vez, lhes serve de cobertura.

Porém, a lei à luz da qual tem de se verificar se o terraço é parte comum ou individual, será a lei em vigor à data da constituição da PH e tal lei tanto pode ser a que resulta da redacção primitiva do Código Civil de 1996, por a constituição da propriedade ter ocorrido antes da data de entrada em vigor do DL 268/94 de 25/10, como a nova redacção introduzida por este diploma legal.

Afigura-se, no entanto, que a nova redacção dada à al. b) do nº 1 do art. 1421º do CC, pelo DL nº 267/94, de 25/10, constitui lei interpretativa em relação à anterior redacção (neste sentido Ac. TRC de 23/9/2008, proc. nº 521/1996, relatado pela Desembargadora Sílvia Pires, ao escrever que anteriormente era a seguinte a redacção desta alínea, a qual correspondia à versão original do C. Civil de 1966, que quase copiou o ponto 2.º, do artigo 13º, do antigo Decreto-Lei n.º 40.333: ‘O telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso do último pavimento’.

Na vigência desta redacção discutiu-se se tal previsão abrangia os chama­dos terraços de cobertura intermédios, isto é os terraços que apesar de servirem de cobertura a alguma ou algumas fracções, se situavam ao mesmo nível doutra ou doutras fracções, podendo servir de pátio ou varanda a estas.

Enquanto uns consideravam que tais terraços estavam incluídos na previ­são da transcrita alínea (vide os seguintes acórdãos do TRL de 23/3/1982, relatado por Eliseu Figueira, na C.J., Ano VII, tomo 2, pág. 173, de 27/4/1989, relatado por Ianquel Milhano, na C.J., Ano XIV, tomo 2, pág. 151, do TRP de 2/7/1991, relatado por Mettelo de Nápoles, na C.J., Ano XVI, tomo 4, pág. 231, de 3/11/1994, relatado por Cesário de Matos, na C.J., Ano XIX, tomo 5, pág. 197), outros sustentavam opinião contrária (Acórdão da TRL de 21/5/1991, relatado por Diniz Nunes, na C.J., Ano XVI, tomo 3, pág. 148).

Ora, como as alterações efectuadas pelo DL 267/94, de 25/10, não esque­ceram o estudo atento das decisões judiciais que sobre esta matéria e ao longo do tempo se têm vindo a pronunciar, a nova redacção introduzida à al. b) do art. 1421º, nº 1, do CC, teve como intenção acabar com as dúvidas que a anterior redacção suscitava relativamente aos terraços de cobertura intermédios, optando pela sua inclusão no seu âmbito de previsão.

Estamos, pois, perante uma lei interpretativa que se integra na lei inte­grada (art. 13º do CC), pelo que o esclarecimento interpretativo efectuado deve ser considerado para classificar um terraço de cobertura intermédio, mesmo que a PH tivesse sido constituída em data anterior à entrada em vigência do referido DL 267/94.

Como referiu Batista Machado, «Para que uma Lei Nova possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o legislador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face dos textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a Lei Nova vem consagrar, então esta é decididamente inovadora» in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador. Coimbra, Almedina, 1989, pág. 246/247.

Como se sabe, a solução dada à questão em análise era controvertida, quer na doutrina quer na jurisprudência. Com efeito, a lei em vigor antes da aprovação do DL 268/94 de 25/10 dispunha que «O telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso do último pavimento» - al. b) do nº 1 do art. 1421º do CC. Após o DL nº 267/94, de 25/10, a norma foi reformulada passando a ter a seguinte redacção: «O telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fracção».

Da leitura das redacções vemos que a após a entrada em vigor DL nº 267/94, de 25/10, se eliminou a referência ao «último pavimento», segmento que poderia dar a entender que os terraços de cobertura intermédios não integravam o conceito de «partes comuns», ficando agora claro que todos os terraços de cobertura são comuns.

Ora, já era possível chegar a esta conclusão no âmbito da lei antiga, como resulta do antes exposto, embora aquela norma desse também origem a decisão em sentido oposto.

Há quem advogue o entendimento seguido no Ac. proferido no processo n.º 17/15.0T8SAT.C1, datado de 15/11/2016, onde se perfilha pelas razões expostas, o entendimento seguido no Ac. supra citado, n.º 521/996, relatado pela adjunta Desembargadora Sílvia Pires, que a nova lei veio colocar termo à controvérsia, sendo por isso uma lei interpretativa, cuja aplicação abrange as situações constituídas antes da sua entrada em vigor, nos termos do nº 1 do art. 13º do CC, onde se dispõe que «1. A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza».

Às razões supra referidas, neste sentido, cabe ainda acrescentar outras, a saber:

Em primeiro lugar, cumpre ter presente, como se referiu no ponto 4 do preâmbulo do DL nº 40.333, de 14/10/1955, relativo à definição dos bens comuns aos diversos proprietários, diploma que definiu o regime da PH até ao início de vigência do novo CC, que «A ideia fundamental sobre a qual deve repousar o critério de distinção entre as coisas comuns e as coisas de propriedade singular parece ser esta: devem considerar-se comuns, na falta de título em contrário, as coisas que se encontram afectadas ao uso comum dos diversos proprietários.

Quanto a nós tal não significa que – uso em comum e propriedade comum – andem necessariamente associadas no capítulo do domínio horizontal. Concebe-se perfeitamente que uma coisa possa ser usada por alguns ou todos os interessados, que todos os co-utentes concorram por esse facto para as respectivas despesas de conservação e funcionamento e, no entanto, a propriedade dela caiba a um ou a alguns deles apenas, não sendo é esse o regime correspondente à intenção com que, em regra, agem os interessados».

Desde logo, por a natureza e função do direito de PH não excluir que uma parte do prédio pode ser comum e, no entanto, o seu uso exclusivo pode encontrar-se reservado para um dos condóminos.

Em segundo lugar, a letra e o sentido da norma constante da al. b) do nº 1 do art. 1421º do CC apontam no sentido de se considerarem como partes comuns os terraços com função de cobertura. Com efeito, afigura-se ser esse o sentido imediato da norma: são comuns «O telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso do último pavimento». Com efeito, toda a cobertura de um edifício ou parte de um edifício, interessa ao universo dos condóminos, pois a cobertura tem uma função de protecção da totalidade ou de parte do edifício.

A natureza comum de tais partes do edifício justifica-se apelando ao interesse comum que existe no sentido de garantir permanentemente a segurança e protecção do edifício, pois a boa manutenção das coberturas do edifício (mesmo que sejam terraços de cobertura situados em cotas inferiores à do telhado), torna-se necessária para garantir a «saúde» do edifício.

No sentido dos terraços que servem ao mesmo tempo de cobertura serem sempre comuns, independentemente do piso em que se situam, pronunciou-se Rui Miller, in Propriedade Horizontal, 3.ª edição revista e actualizada. Almedina, 1998, pág. 156, ao comentar a nova redacção dada à al. b) do nº 1, do art. 1421º, pelo DL nº 267/94, de 25/10, ao referir «O Decreto-Lei n.º 267/94, além de aditar a este artigo o n.º 3, introduziu ligeiras alterações nas alíneas b) e d) do n.º 1 e d) do n.º 2. Na primeira dessas alíneas, veio afirmar que são comuns o telhado ou os terraços de cobertura ainda que destinados ao uso de qualquer fracção e não apenas, como constava, ao do último pavimento. Veio, assim, tornar certo o que já podia concluir-se por interpretação do texto anterior: pois que, sendo o telhado ou a cobertura do edifício essencial à normal fruição do prédio por todos os condóminos, o seu uso por um só deles, seja ele o do último pavimento ou de qualquer outro, ou por parte ou pela totalidade daqueles, é insusceptível de desvirtuar a natureza comum dessa parte do edifício», Ac. STJ de 16/10/2003, do TRP de 25/9/2003).

Em sentido oposto pronunciou-se Moutinho de Almeida, in Propriedade Horizontal, Almedina, 1996, pág. 57, ao referir que «Os terraços de cobertura são coberturas que excluem o telhado, ou melhor, telhados sui generis, feitos geralmente de pedra, cimento ou outra matéria impermeável, sendo acessíveis por baixo. Podem cobrir todo o edifício ou apenas parte dele. Não há que confundir terraços existentes nos planos dos vários pisos com acesso pelos mesmos e que deles fazem parte. A esta última espécie de terraços, que não são comuns, dão os italianos o nome de “terraza a livello», Ac. STJ, no acórdão de 8/4/1997, www.DGSI.pt, identificado com o número 96A756 onde refere «I - Não é terraço de cobertura, para efeitos do artigo 1421.º, n.º 1, alínea b), do CCIV66, o terraço intermédio, incrustado num dos vários andares do prédio e que dá cobertura apenas a uma parte deste, que não se situa na sua parte superior ao nível do último pavimento. II - Tal terraço intermédio não se presume comum, desde que exclusivamente afecto ao uso de um dos condóminos, isto por interpretação a contrário do artigo 1421.º, n.º 2, alínea e), do citado Código. III - O artigo 1421.º, n.º 1, alínea b), do CCIV66, na redacção do Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 de Outubro, não abrange os terraços intermédios, embora podendo servir de cobertura a outros andares. IV - Mesmo que assim não devesse entender-se, a nova redacção desse preceito dada pelo Decreto-Lei n.º 267/94 não se aplica às situações jurídicas constituídas por força da verificação de certos factos, cujo conteúdo ou cujos efeitos ficaram legalmente determinados com a produção desses factos e à medida dos mesmos factos, como sucede no caso de o terraço já ter sido afectado ao uso exclusivo de determinado condómino no domínio da lei na sua primitiva redacção, sob pena de se atribuir efeito retroactivo à nova redacção do preceito, efeito que ela não tem» e Ac. do mesmo venerando Tribunal datado de,, 8 de Abril de 1997, relatado pelo Conselheiro Machado Soares. Ponderando as várias posições, temos para nós, como já deixamos referido in supra, que a tese que melhor se adequada às normas legais é a primeira porque é aquela que promove os interesses dos condóminos, dado que os terraços de cobertura existentes nos edifícios, dados os riscos que apresentam para a degradação dos edifícios, não podem ficar na dependência da vontade individual de um ou alguns condóminos.

Sendo que também não vemos diferença entre esse terraço intermédio que tem função de cobertura, “telhado” ainda que situado numa posição intermédia e um mesmo espaço físico agora colocado no topo do edifício mas agora coberto com um telhado (deixando de ser terraço) (cfr. neste sentido o Ac. do STJ de 16/10/2003 (Luís Fonseca), em www.dgsi.pt, identificado sob o n.º 03B2567, onde se escreveu: «E tais terraços de cobertura tanto podem ser do último pavimento como de pavimentos intermédios pois onde a lei não distingue, também o intérprete não deve distinguir, salvo se houver razões para se concluir ser outro o espírito da lei, a vontade do legislador, o que se não verifica neste caso».

12 maio 2025

Uso exclusivo terraço


Tribunal: Relação de Coimbra
Processo: 297/03.4TBBGRD.C1
Data: 29-05-2007

Sumário:
 
I - A situação jurídica dos imóveis, como objecto de um direito real, é definida pelo título de que este direito emerge, e não por qualquer negócio com eficácia meramente obrigacional nem, muito menos, pelo projecto de construção do edifício, ainda que aprovado pela administração pública.
II - Na ausência de definição sobre o fim a que se destina – no título constitutivo ou no regulamento do condomínio – o terraço, como parte comum na propriedade horizontal, pode ser usado em exclusivo pelo último morador, se a construção do edifício assim o consente, não obstante ser propriedade dos condóminos.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A... e mulher B... demandam, na comarca da Guarda, C... e mulher D... , pedindo a condenação dos réus a reconhecer que o terraço do prédio identificado na petição inicial e do qual são titulares de fracções autónomas, é parte comum; a reporem a porta inicialmente existente, por forma a que tenham acesso directo ao terraço; e a absterem-se de praticar quaisquer actos que obstem a que o terraço seja propriedade comum;
Alegam, em síntese, que são titulares da “fracção A”, que compreende o rés-do-chão direito, 2.º e 3.º andares do prédio e que os réus são titulares da “fracção B”, que compreende o rés-do-chão esquerdo, 1.º, e 4.º andar e sótão para arrumações.
Acontece que os réus têm vindo a impedir o acesso dos autores ao terraço de cobertura do prédio, que estes entendem ser parte comum, e ao qual tinham acesso por uma porta cuja utilização os réus lhes vedaram.

2. Os réus contestaram, opondo, também em síntese, que, apesar do título constitutivo só lhes atribuir a titularidade da fracção B que compreende o rés-do-chão esquerdo, 1.º, e 4.º andar e sótão amplo para arrumações, o certo é que, por acordo, autores e réus alteraram o projecto inicial e, por virtude dessa alteração, ficou a pertencer-lhes o último piso do edifício que passou a ser composto por cozinha, arrumos, casa de banho e varanda, correspondendo esta ao que no projecto inicial era o terraço do prédio. E ainda que, em face disso, adquirira, por usucapião todo esse terraço.

3. No prosseguimento da causa veio a realizar-se a audiência de julgamento, posto o que foi proferida sentença que apenas condenou os réus a reconhecerem os autores como donos da fracção A, absolvendo-os de tudo o mais que era pedido, o que corresponde, na prática, à improcedência da acção.
Os autores não se conformam e apelam a esta Relação, concluindo:
1) O Tribunal " a quo” faz uma arbitrária e subjectiva análise interpretação dos factos.
2) Os Juízes têm de fazer uma análise critica integrada dos depoimentos e documentos, atendendo ás garantias de imparcialidade, seriedade, razão da ciência.
3) Devem ser dados como provados os pontos 3, 4, 5, 7, 8, 9, 10,11, 12, 13, e 14 constantes da Base instrutória.
4) Devem ser dados como não provados os factos dos pontos 23, 24,30,31,32 e 33.
5) Devem os réus reconhecer o terraço como parte integrante e comum do prédio constituído em propriedade horizontal.
6) Em conformidade com as disposições legais que sustentam o regime da Propriedade Horizontal, e face ao disposto na Escritura Pública de constituição da Propriedade Horizontal, dever-se-á proceder à realização de obras, por responsabilidade do condomínio, de forma a criar uma porta de acesso ao terraço (com base no projecto de obra original), por forma a respeitar o disposto no art. 1415°CC (fracção autónoma com saída própria para uma parte comum do edifício).
7) Devem os réus abster-se de praticar todos e quaisquer actos que obstem ao reconhecimento de que o terraço é parte comum do prédio.
8) A sentença recorrida viola as mais elementares normas Jurídicas.

4. Os apelados contra-alegaram em defesa do julgado. Estão colhidos os vistos. Cumpre conhecer e decidir.
Entretanto vejamos os factos que vêm dados como provados da 1.ª instância, seguindo a mesma ordem e numeração.
A. Os autores são donos e legítimos proprietários do seguinte prédio: “Fracção A”, sita na Rua X..., correspondente ao rés-do-chão direito, que serve de garagem, com uma casa de banho; segundo andar com seis divisões, cozinha e duas casa de banho, terceiro andar com 4 divisões, cozinha e duas casa de banho, inscrita na matriz predial da freguesia de Santa Maria, Manteigas sob o artigo 861 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Manteigas, freguesia de Santa Maria sob o 00003/100185/ A e inscrito a favor dos autores pela inscrição G1.
B. Os réus são donos e legítimos proprietários do seguinte prédio: “Fracção B”, sita na Rua X..., correspondente ao rés-do-chão esquerdo, que serve de garagem, com uma casa de banho; primeiro andar com cinco divisões, cozinha e duas casa de banho, quarto andar com 4 divisões, cozinha e duas casa de banho, e sótão amplo para arrumações, inscrita na matriz predial da freguesia de Santa Maria sob o artigo 861, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Manteigas, freguesia de Santa Maria sob o n.º 00003/100185/B e inscrito a favor dos autores pela inscrição G1.
C. Tais fracções resultaram da constituição em propriedade horizontal do prédio urbano, sito na R. X..., composto de casa de habitação com r/chão direito e esquerdo, 1, 2, 3 e 4 andares e sótão amplo, com área coberta de 165 m 2 - L. 35 m2, inscrito na matriz predial da freguesia de S. Maria sob o artigo 861, de que autores e réus eram comproprietários na proporção de metade, por escritura de constituição de propriedade horizontal e divisão outorgada no Cartório Notarial de Manteigas em 17 de Janeiro de 1985 e exarada a fls 10 do L 137.
D. Tal prédio foi construído por autores e réus, num prédio rústico denominado Santo Estevão ou Tanque, destinado a construção urbana, com a área de 200 m2 e fazendo parte do inscrito na matriz predial sob o artigo 802 da freguesia de Santa Maria.
E. O prédio descrito em D) foi adquirido por autores e réus por compra a E... e mulher F... e inscrito na Conservatória do Registo Predial pela apresentação 2/100185.
F. Nos termos da escritura de constituição de propriedade horizontal junta a fls l0, cujo teor se dá por reproduzido, acordaram autores e réus que “São partes comuns do edifício as escadas de acesso e as previstas no n.º 1 do artigo 1421.º do Código Civil”.
G. A antena de televisão está colocada no terraço junto à chaminé.
H. E todos os circuitos de distribuição da rede de televisão.
I. Os réus deslocaram-se a Portugal onde permaneceram cerca de 10 dias.
J. Os autores e réus alteram o projecto inicial do prédio, em 1983.
L. Por força dessa alteração o último piso do prédio passou a ser constituído por casa de banho, arrumos, cozinha e terraço.
M. E o acesso ao terraço passou a ser feito pela cozinha.
N. O sótão ficou a pertencer à fracção B porque a fracção A tinha o rés-do-chão maior e dois pisos seguidos, valorizando-o
O. E o 1.° andar da fracção B está enterrado.
P. A porta de acesso ao sótão é a mesma que existia em 1982.
Q. Colocada antes do projecto de alterações.
R. Os réus possuem em exclusivo o último piso desde a construção, em 1982 .
S. Sem oposição de quem quer que fosse.
T. À vista de todos, incluindo os autores.
U. De forma contínua, sempre que vêm a Portugal.
V. E na convicção de serem dele legítimos proprietários.
W. Os réus tiveram conhecimento da alteração do projecto.
X. Os réus deslocaram-se a Portugal;
Y. Os réus pagarão honorários ao seu mandatário;

5. O que os autores pretendem com esta acção é que se reconheça ser parte comum do prédio o terraço – que tudo indica ser de cobertura do prédio – e que os réus sejam condenados a facultar-lhes o acesso a esse terraço, já para ter acesso às coisas comuns que aí estão, tais como a antena colectiva e equipamento de distribuição de sinal de televisão e arranjos necessários do isolamento da cobertura do prédio, para evitar infiltrações de águas pluviais, queixando-se mesmo de humidades na sua fracção que exigem uma intervenção desse tipo e a atitude dos réus o impedem.
A posição dos réus é que todo esse piso superior lhes pertence, quer porque uma parte – o sótão para arrumações já integra a sua fracção, quer porque adquiriram o terraço por usucapião, em virtude duma posse em nome próprio a partir do acordo que fizeram com a alteração do projecto de construção.
Não lhes tendo dado razão, a 1.ª instância rejeitou a pretensão dos autores e aceitou a posição dos réus, configurando-a como uma defesa por excepção, já que, apesar de intitularem o seu articulado de “contestação reconvenção”, não formularam qualquer pedido reconvencional, nem mesmo após advertência do sr. Juiz.
Agora, em recurso, os autores apelantes resumem a sua discordância a duas questões: i) alteração da matéria de facto, por erro de julgamento, de forma a que se dê como provados os factos que suportam a compropriedade do terraço e não provados os factos que suportaram a declaração de propriedade exclusiva desse mesmo terraço; ii) que se realizem as obras necessárias (abertura da porta de acesso directo ao terraço) para evitar a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal.

6. Digamos, desde já, que a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal não consta dos articulados e não foi, por isso mesmo, apreciada em 1.ª instância, pelo que é uma questão nova e a Relação só reaprecia decisões já proferidas e não conhece de novas questões. Logo, tudo o que envolva uma tomada de posição sobre a validade ou nulidade do título constitutivo não vai ser aqui e agora apreciado.
Resta, então, a 1.ª questão – saber se o terraço é propriedade comum ou exclusiva dos réus – pela confirmação ou alteração da matéria de facto decidida em 1.ª instância.
E a resposta é não. Não é propriedade exclusiva dos réus. E não é porque a decisão que o declara tem como pressuposto a usucapião e a usucapião é a posse mantida por certo lapso de tempo que faculta ao possuidor a aquisição do direito (artigo 1287.º do Código Civil). A posse é um conceito de direito. À base instrutória foi levado o ponto 29, assim redigido: “ os réus possuem em exclusivo o último piso desde a construção, em 1982?”. A resposta foi: provado.
Ora esta resposta decidia a acção. Não seria preciso mais nada. E não pode ser assim, como é óbvio. Pretendeu-se responder a um pretenso facto, quando na verdade se respondeu a uma questão de direito. Logo a consequência é que se tem por não escrita a resposta que o tribunal deu a esse quesito, como resulta expressamente do artigo 646.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.
Só por aqui se fica com a noção exacta de que não ficou provada a posse exclusiva dos réus sobre o terraço. Logo, não há usucapião; não há aquisição da propriedade exclusiva por esse modo de adquirir. Por conseguinte não importa rever a prova sobre os restantes factos reclamados pelos apelantes.
Por outro lado está dado como provado o que consta do título constitutivo – escritura de constituição de propriedade horizontal junta a fls l0 – “são partes comuns do edifício as escadas de acesso e as previstas no n.º 1 do artigo 1421.º do Código Civil”. E o artigo 1421.º, n.º 1, b) inclui no elenco das partes comuns dos edifícios em regime de propriedade horizontal os terraços de cobertura. Logo o questionado terraço constitui parte comum do edifício.
A este propósito convirá anotar o que escrevem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela ( 1): nestes casos “prevalece sempre o que resultar do título constitutivo, dada a natureza real do estatuto que nele se contém. A situação jurídica do imóvel, como objecto de um direito real, é definida pelo título de que este direito emerge, e não por qualquer negócio com eficácia meramente obrigacional (…) nem, muito menos, pelo projecto de construção do edifício, ainda que aprovado pela administração pública”. Também a jurisprudência tem sido nesse sentido. (2 )

7. Claro que isto ainda não resolve o problema dos autores, dado que fica por definir o pretenso direito de acesso ao terraço, porque uma coisa é uma parte do prédio ser comum e outra é o fim a que se destina essa parte comum, que tanto pode ser definido no título constitutivo (artigo 1418.º, n.º 2, a) e b) do Código Civil), como no próprio regulamento do condomínio, quando elaborado pela assembleia de condóminos (artigo 1429-A do Código Civil).
Sendo cada condómino proprietário da fracção que lhe pertence, (artigo 1420.º, n.º 1 do Código Civil) os direitos inerentes estão definidos no respectivo regime jurídico da propriedade em geral, com as especificidades da propriedade horizontal; mas sendo comproprietário das partes comuns, o uso das mesmas depende do fim a que se destinam, podendo até haver partes comuns dotadas de autonomia, assim como podem ser atribuídos aos comproprietários de determinadas fracções autónomas direitos especiais de uso sobre certas coisas comuns (3 ).
A este propósito é elucidativa a seguinte passagem escrita pelo saudoso Prof. Mota Pinto “o terraço na propriedade horizontal, mesmo quando destinado ao uso do último morador – mesmo quando este o pode utilizar para recreio ou usos vários – é propriedade dos condóminos. E, por exemplo, um direito de construir sobre ele é um direito de que dispõe a comunidade, e não apenas o proprietário do último andar”. ( 4 )
Aliás é assim que acontece, de um modo geral, com o último patamar das escadas de qualquer condomínio, que normalmente só é utilizado pelo último morador, sem prejuízo de qualquer um aí poder aceder.
É esta a diferença entre o direito de compropriedade do condómino no regime da propriedade horizontal e o de uso que cada um pode fazer de partes comuns.
No caso dos autos, o modo como o edifício está construído em consequência da alteração do projecto por acordo dos condóminos, apenas permite, ao que parece, que só os réus consigam aceder directamente da sua fracção ao terraço, relativamente ao qual o título é omisso quanto ao fim a que se destina e não consta que haja regulamento sobre o seu uso.
Não obstante, os autores não deixam de ser comproprietários do terraço. O que acontece é que, ao que parece por culpa própria, não têm condições de acesso ao terraço. E também não tem apoio legal a sua pretensão de obrigar os réus a fazer obras na própria fracção (repristinando o projecto inicial) que permitam o acesso dos autores ao terraço. Claro que sem prejuízo do direito de passagem forçada momentânea a que se refere o disposto no artigo 1349.º do Código Civil, efectivado através do processo de suprimento regulado no artigo 1425.º do Código de Processo Civil.
E se porventura os autores entendem que esta situação é causa de anulação do título constitutivo da propriedade horizontal, só lhes resta seguir o caminho indicado no artigo 1416.º, 1 e 2 do Código Civil, certos de que esta acção não o tem por objecto.
Podemos então concluir que:
- A situação jurídica dos imóveis, como objecto de um direito real, é definida pelo título de que este direito emerge, e não por qualquer negócio com eficácia meramente obrigacional nem, muito menos, pelo projecto de construção do edifício, ainda que aprovado pela administração pública.
- Na ausência de definição sobre o fim a que se destina – no título constitutivo ou no regulamento do condomínio – o terraço, como parte comum na propriedade horizontal, pode ser usado em exclusivo pelo último morador, se a construção do edifício assim o consente, não obstante ser propriedade dos condóminos.

8. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, em consequência do que revogam, em parte, a sentença recorrida e declaram que o terraço do prédio identificado nos autos é parte comum, condenando-se os réus a reconhecê-lo e a abster-se de praticar quaisquer actos que obstem a esse reconhecimento, mantendo-se a absolvição quanto ao pedido de condenação de repor a porta que, no projecto inicial, dava aos autores acesso directo ao terraço.
Custas, em ambas as instâncias, na proporção de decaimento.
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(1) Código Civil anotado, 2.ª edição, vol. III, págs.412
(2) Veja-se, entre muitos outros, o acórdão desta Relação, de 21-11-1989, sumariado no BMJ, 391.º- 712
(3) Cfr. P. Lima e A. Varela, ob. Cit. 411
(4) Direitos Reais, 1970/71, 286, nota 58