Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

09 maio 2025

O tipo legal da propriedade horizontal


A sujeição de um edifício ao regime da Propriedade Horizontal (PH) torna possível que cada uma das fracções autónomas em que juridicamente se decompõe seja objecto de uma afectação diferenciada das demais. Destarte, deixa de haver compropriedade sobre todo o edifício e passam a coexistir várias propriedades sobre cada uma das fracções em que o edifício foi repartido.

É claro que a constituição da PH não se esgota na divisão do edifício por fracções autonomizadas, quer dizer, as fracções autónomas não são o único objecto a considerar na propriedade horizontal. Para além das fracções autónomas há que considerar o problema da atribuição jurídica das partes do edifício que não fazem parte de nenhuma fracção: as denominadas partes comuns - v.g., o próprio solo em que o edifício assenta, os telhados, paredes externas da fachada, etc. - quer o sejam imperativa ou só supletivamente (art. 1421°, n°s 1 e 2 do CC). Assim, por exemplo, são parte comuns, entre outras, as fachadas [1] e o peitoril de uma janela, na sua face ou lado exterior, por se integrar na fachada [2].

Na PH - abstraindo do problema da sua natureza, por não relevar para a economia do recurso [3] - há que lidar com um direito que, no tocante às partes comuns, concorre com idênticos direitos pertencentes a outras pessoas, e com a consequente necessidade de providenciar pela administração dessas partes comuns, fonte permanente de conflitos entre os condóminos (art.s 1414°, 1420°, n°s 1 e 2, e 1421° do CC).

O tipo da PH envolve, assim, uma posição dúplice do condómino: de um aspecto, proprietário da fracção; de outro, comproprietário das partes comuns do edifício que não constituem fracções autónomas (art. 1420°, n° 1, do CC). A lei declara que o conjunto dos dois direitos é incindível (art. 1420°, n° 2, do CC). Para quem entenda que não se trata, na realidade, de dois direitos mas apenas de um direito [4] - o direito de PH, que se estende, simultaneamente, à fracção autónoma e às partes comuns - aquela expressão é deciaradamente infeliz.

Seja como for, o conteúdo típico da PH exprime aquela duplicidade ou complexidade. No que tange à fracção autónoma, o conteúdo do direito do condómino tem a mesma feição da propriedade: o conteúdo positivo deste direito aplica-se igualmente à propriedade horizontal (art. 1305° do CC). Isto explica que o condómino possa usar e fruir a fracção e as partes comuns do edifício - a menos que estejam afectas ao uso exclusivo de um ou de alguns condóminos - assim como dispor do seu direito ou constituir direitos reais ou pessoais de gozo, de garantia ou de aquisição.

A delimitação negativa ou o conteúdo negativo do direito de PH relativamente ao condómino é a mesma do direito real de propriedade, quanto às fracções que exclusivamente lhe pertencem, e da compropriedade, relativamente às partes comuns (art. 1422°, n° 1, do CC). Todavia, não é só em matéria de restrições que o direito dos condóminos sobre as fracções autónomas e sobre as partes comuns se encontra subordinado ao estatuto da propriedade ou da compropriedade sobre imóveis: ao mesmo estatuto se há-de recorrer sempre que na lei se não contenham regras específicas para determinar o regime jurídico aplicável às fracções autónomas ou às partes comuns.

Assim, por exemplo, no tocante à legitimidade do condómino para, desacompanhado dos demais, actuar direitos sobre as partes comuns, há que recorrer às regras da compropriedade de imóveis, recurso de que se extrai, quanto a esse problema, esta regra: cada condómino pode reivindicar de terceiro a parte comum, sem que ao demandado seja lícito opor que a coisa comum lhe não pertence por inteiro, previsão que deve ser objecto de extensão, por analogia ou, ao menos, por interpretação extensiva, a outras pretensões (art.s 1404°, 1405°, n° 2, e 1422°, n° 1, do CC).

É, no entanto, possível recortar um conteúdo negativo que introduz uma limitação específica da PH. Um dos deveres dos condóminos que conformam esse conteúdo negativo é o de não prejudicar, quer com obras novas, quer por falta de reparação, a segurança, a linha arquitéctónica ou o arranjo estético do edifício (art. 1422°, n° 2, a), do CC). Este dever visa, patentemente, preservar a segurança, a linha arquitéctónica ou o arranjo estético do edifício, investindo os condóminos na obrigação de assegurar estas finalidades, que não podem ser prejudicadas nem por acção, nem por omissão. 

Permite-se, porém, obras que modifiquem a linha arquitéctónica ou o arranjo estético do edifício, mediante prévia autorização da AG de condóminos, aprovada por uma maioria representativa de 2/3 do valor total do prédio (art. 1422°, n° 3, do CC, na redacção que lhe foi impressa pelo DL 267/94 de 25/10). Esta regra visou permitir o fecho de varandas com marquises, uma prática corrente que desfigura gravemente as nossas cidades e que devia ser devidamente acautelada no momento da aprovação pela administração autárquica dos projectos de arquitectura.

Esta restrição só atinge, porém, a fracção autónoma do condómino, dado que é patente que as partes do edifício que tem em vista são as que pertencem aos condóminos em propriedade exclusiva: as inovações nas partes comuns são reguladas por outra disposição do mesmo Código: o art. 1425°, n° 1, de harmonia com o qual, as obras que constituam inovações dependem da aprovação da maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar 2/3 do valor total do prédio.

Apesar de a doutrina e a jurisprudência não serem acordes, deve, na verdade, ter-se por entendimento preferível, a de que as inovações a que se refere aquela disposição dizem respeito apenas às partes comuns [5]. E aplica-se só ás partes comuns - mas a todas as partes comuns, portanto, mesmo aquelas que estão afectadas ao uso exclusivo de um ou de alguns condóminos [6].

Por inovações deve entender-se todas as obras que constituem uma alteração do edifício tal como foi originariamente construído, licenciado e existia à data da constituição da PH. As inovações visam o melhoramento da coisa comum e tanto podem consistir em alterações da sua forma ou substância como da sua afectação ou destino [7]: são alterações as que trazem algo de novo ao edifício, quer criando algo em benefício das coisas comuns, quer levando ao desaparecimento de coisas que existiam. O que releva é que seja criado algo novo ou diferente nas partes comuns do edifício. São inovações, neste sentido, tanto a construção de uma garagem, como a demolição de um terraço, a instalação de um pára-raios ou de um sistema de ar condicionado - ou de uma marquise sobre um terraço de cobertura [8].

Nas inovações há que fazer uma distinção entre as relativamente proibidas e as absolutamente proibidas. As primeiras são as que não prejudicam a utilização, por parte de algum dos condóminos das coisas próprias ou comuns, ainda que afectas ao uso exclusivo de um condómino; as segundas são aquelas, que, pelo contrário, prejudicam essa utilização - embora não seja necessário um prejuízo efectivo do condómino, mas mera susceptibilidade desse prejuízo.

As inovações relativamente proibidas exigem, para serem lícitas, a aprovação prévia, em AG, de uma maioria de condóminos, representativa de 2/3 do valor total do prédio, mesmo em 2ª convocatória (art. 1425°, n° 1, do CC); as segundas são absolutamente proibidas, no sentido de que não podem ser levadas a cabo, mesmo que deliberadas por uma maioria qualificada, sem o consentimento do condómino lesado por elas (art. 1425°, n° 2, do CC). Exemplo de inovação proibida é, decerto, a construção de marquise em terraço de cobertura [9].

Quer a ilicitude da inovação resulte da falta de aprovação da maioria necessária dos condóminos, quer resulte da privação da utilização das coisas comuns ou próprias por parte dos condóminos a sanção aplicável será, em princípio, a destruição da obra e a restituição da parte comum ao status quo ante [10]. Mal vale a pena perder uma palavra para explicar que o facto de ao condómino autor da obra de inovação proibida ter sido concedida, pela autarquia, licença de construção e de utilização dessa obra não inibe os restantes condóminos de exercerem os seus direitos.

O problema de saber se um acto autorizativo administrativo, que exclui a ilicitude no âmbito do direito administrativo, deverá também ser considerado como causa justificativa o domínio jurídico-civil é particularmente complexo [11].

Uma solução possível é a de delimitar o âmbito da aplicação da norma de justificação ao domínio específico de que ela faz parte, deixando incólume a norma de ilicitude pertencente a outros ramos de direito. Assim, por exemplo, uma licença de construção civil exclui apenas a ilicitude segundo as normas do direito urbanístico e de edificações urbanas - mas não exclui a ilicitude no campo do direito civil. Portanto, apesar de a actividade destinatária de uma autorização ser valorada como lícita pela ordem jurídico- administrativa, ela pode ter suportar, em alguns casos, a actio negatória de terceiros e acções de responsabilidade extracontratual por actos ilícitos.

A autorização administrativa opera como causa justificativa no âmbito do direito administrativo, mas não se transfere ipso facto para o direito civil. O acto autorizativo jurídico-público deixa, por isso, imperturbados os direitos de terceiro modelados pela lei civil. Está nestas condições, por exemplo, a autorização de construção ou utilização que deve limitar-se a reconhecer e a conotar juridicamente o ius aedificandi ou a utilização do edifício - e já não a obrigar terceiros a tolerar efeitos resultantes do exercício, pelo beneficiário da autorização, da actividade privada de construção, autorizada pela administração.

Numa palavra: o facto de obra ter sido licenciada pela administração não obsta a que os restantes condóminos a quem ela prejudica, exerçam os direitos que para eles decorrem do estatuto da PH [12]. Do mesmo modo, a ilicitude administrativa da obra não se transfere, ipso facto, para o domínio jurídico-civil, sendo exigível uma valoração autónoma dessa ilicitude em face das normas de direito privado reguladoras da situação jurídica, do que decorre a possibilidade de a obra, sendo embora, ilícita à luz das normas de direito público reguladoras, v.g. da edificação urbana, o não seja por aplicação, v.g., das normas reguladoras do estatuto da propriedade horizontal. Em caso de concurso de ilicitudes, deve dar-se prevalência, nos casos em que a controvérsia gravita em torno dos direitos dos condóminos, á ilicitude que decorre da violação daquele estatuto - sem prejuízo, evidentemente, de a administração - pública - actuar os instrumentos de reintegração do ordenamento urbanístico violado, aplicáveis ao caso.

Só mais duas palavras, mas não menos importantes, para explicar que a obrigação que vincula o condómino autor da inovação ilícita na parte comum - ou que altere a linha arquitéctónica ou o arranjo estético do edifício - de a demolir, é uma obrigação propter rem - e uma obrigação propter rem ambulatória: essa obrigação transmite-se juntamente com o direito real a que está ligada, mesmo que no negócio de alienação nenhuma referência lhe seja feita e o adquirente não disponha de elementos objectivos que denunciem a existência dela [13].

Dentro das situações jurídicas propter rem - i.e., aquelas em que o sujeito activo ou passivo se determina em atenção à titularidade de um direito real - avultam, como mais relevantes, as chamadas obrigações reais ou, com maior correcção, propter rem - que não correspondem a uma categoria legal, dado que a lei nunca lhes faz qualquer referência, e que se caracterizam pela circunstância de o seu sujeito passivo ser determinado pela titularidade do direito real [14].

Concebido o direito real como situação jurídica complexa que integra no seu conteúdo um conjunto de poderes e faculdades, a par de situações jurídica negativas - deveres, sujeições, etc. - situações jurídicas negativas que delimitam o seu aproveitamento típico e fixam a sua extensão, compreende-se que as obrigações propter rem não tenham autonomia, integrando o conteúdo do direito real e compondo a sua estrutura complexa, tendo, portanto, a natureza desse direito. Sendo a fonte da obrigação propter rem o direito real ela transmite-se com a transmissão do direito real - sendo, por isso, ambulatória - transmissão que exonera o transmitente dever de prestar, fazendo-o recair no novo adquirente. Realmente, sendo a obrigação propter rem uma decorrência do direito real, do seu conteúdo, todo o titular está obrigado a cumpri-la, ainda que, segundo a doutrina que se julga preferível, não tivesse essa qualidade no momento em que a obrigação se venceu [15] - sem prejuízo, naturalmente, dos efeitos de eventual erro, dolo ou culpa in contraendo na relação entre o alienante e o adquirente e que cabem no âmbito do regime do negócio jurídico praticado, aspecto particularmente relevante dada a falta de publicidade, uma vez que as obrigações propter rem, por pertenceram ao conteúdo do direito real não são objecto de publicidade autónoma e, por isso, representam um gravame importante para o adquirente que fica vinculado a desenvolver uma actividade com a qual pode não ter contado.

Notas:

[1] Acs. da RP de 04.04.22 (1207/19) e 22.11.2021 (21401/19).
[2] Ac. da 14.11.2020 (241/16).
[3] Cfr. sobre ele, Menezes Cordeiro, Direito Reais, Reprint, Lex, Lisboa, 1979, págs. 636 a 642, e Propriedade horizontal e alojamento local, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ano LXIV, 2023, n.° I, Tomo I, págs. 33 e ss., Carvalho Fernandes, Da Natureza Jurídica do Direito de Propriedade Horizontal, Cadernos de Direito Privado, n.° 15, Julho/Setembro, 2006, pág. 3 e Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, Princípia, Cascais, 2002, pág. 103.
[4] Como sucede, por exemplo, com José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, pág. 724.
[5] Aragão Seia, Propriedade Horizontal, Condóminos e Condomínios, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 131, Sandra Passinhas, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, Almedina, Coimbra, 2000, Henrique Mesquita, A Propriedade Horizontal no Código Civil Português, RDES, Ano XXIII, n°s 1 a 4, 1976, pág. 139, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume III, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pág. 434, Abílio Neto, 2006, pág. 282, e Ana Taveira da Fonseca, Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, Universidade Católica Portuguesa, pág. 463; Acs. do STJ de 07.03.83, BMJ n° 325, pág. 575, e de 26.05.92, BMJ n° 417, pág. 734 e da RP de 14.01.86, CJ, 86, I, pág. 160.
[6] Ac. do STJ de 12.03.1996, www.dgsi.pt.
[7] Ac. do STJ de 03.04.2004, www.dgsi.pt.
[8] Ac. da RL de 24.06.1999, www.dgsi.pt.
[9] Ac. da RL de 27.04.1989, CJ, 89, II, pág. 51.
[10] Pires de Lima e Antunes, Varela, Código Civil Anotado, vol. III, cit. pág. 435 e Ac. do STJ de 05.02.04, www.dgsi.pt.
[11] José Joaquim Gomes Canotilho, Actos Autorizativos Jurídico-Públicos e Responsabilidade por Danos Ambientais, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1983, págs. 2 a 59.
[12] Acs. do STJ de 25.05.2000, CJ, STJ, VIII, II, pág. 80, e de 26.05.1982, BMJ n.° 417, pág. 734, da RL de 09.05.1985, BMJ n.° 534, pág. 608, e de 27.06.1991, CJ, XVI, III, pág. 176, e da RC de 19.12.1989, BMJ n.° 292, pág. 525, e de 10.01.1995, CJ,
XX, I, pág. 15.
[13] Ac. da RP de 19.05.1998, www.dgsi.pt e Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, Coimbra, 1990, pág. 333.
[14] Segundo Henrique Mesquita - Obrigações Reais e Ónus Reais, cit. pág. 280 - como obrigações propter rem devem qualificar-se apenas aquelas a cujo cumprimento se encontra adstrito o titular de um direito real, seja por efeito do respectivo estatuto (uma vez verificados os pressupostos de que dependem) seja em consequência da violação das regras que nele se contém; para Menezes Leitão - Direitos Reais, 2ª edição, págs. 85 e ss. - as obrigações propter rem correspondem a obrigações em que o respectivo devedor é determinado pela titularidade de um direito real. Trata-se, assim, de obrigações cujo sujeito passivo é variável, correspondendo ao que for titular naquele momento de determinado direito real, o que justifica a sua qualificação como ambulatória. Cfr. os Acs. do STJ de 22.01.2021 (25384/18.0T8PRT- A.P1.S1) e da RP de 08.09.2020 (25384/18PRT-A.P1).
[15] Assim, José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2004, pág. 109; diferentemente, distinguindo consoante a publicidade do direito se reflecte ou não na obrigação vencida correspondente, Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, UCP, 2017, pág. 63. Nesta perspectiva apenas se consideram ambulatórias, para além das obrigações propter rem que imponham a prática de actos materiais na coisa sobre que o direito real incide, toda aquela cuja existência seja indiciada pela situação em que a coisa ostensivamente se encontre.

02 maio 2025

Exploração da prática de prostituição


A prática da prostituição, que era considerada ilícita e imoral no Decreto-Lei nº 44 579, de 19 de Setembro de 1962, deixou de ser considerada ilícita ou punível pelo Decreto-Lei nº 400/82, artigo 6º, nº 2, do actual Código Penal.

Após o 25 de Abril de 1974 operou-se uma mudança radical nos hábitos sexuais dos portugueses sendo comummente aceite pela população a mulher ou homem que tem vários parceiros(as) sexuais, não sendo de modo algum reprovável socialmente tal actividade ou considerada imoral, ilícita ou desonesta, pela generalidade da sociedade portuguesa.

Vulgarizou-se em Portugal, após o 25 de Abril de 1974 a exibição de filmes pornográficos ao vivo, ou de livros e até de bares e cabaretes onde as mulheres e homens combinam encontros de sexo (acórdão da Relação de Coimbra, de 18 de Junho de 1986, in C.J., ano XI, 1986, p. 96).

Pode admitir-se, no limite, que na indagação das práticas ilícitas, imorais ou desonestas pode ocorrer invasão da intimidade da vida privada dos cidadãos. A integridade moral dos cidadãos é inviolável (cfr. art. 25º da CRP) e a todos são reconhecidos o direito ao bom nome e reputação, à imagem e à reserva da vida privada e familiar (cfr. art. 26º da CRP).

Note-se, contudo, que a lei não visa apenas as práticas ilícitas, mas também as que, embora lícitas, forem imorais ou desonestas segundo os padrões de moralidade pública vigente. A observação reveste-se de largo interesse numa sociedade permissiva, como a nossa, em que a área do ilícito se restringe cada vez mais.

A aplicação do imóvel a casa de prostituição, a casa de passe, a encontros de homossexuais, a permutas de casais, a espectáculos de strip-tease, a venda de publicações ou objectos pornográficos, as exibições de nudismo ou de actos sexuais, etc., constituem exemplos típicos de actos imorais, que podem ser lícitos, se a lei os não reprovar.

O preenchimento dos conceitos de práticas ilícitas, desonestas ou imorais, a que se refere o Código Civil, há-de, naturalmente, fazer-se tendo em conta os valores próprios de uma sociedade democrática, pluralista e aberta, consagrados na Constituição da República.

De facto, dispõe o nº 1 do art. 25º da Constituição que "A integridade moral e física das pessoas é inviolável", e preceitua o nº 1 do art. 26º que "A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar".

No art. 25º/1, consagra-se, pois, o direito à integridade pessoal (à integridade física e à integridade moral), ou seja, o direito da pessoa a não ser agredido ou ofendido no seu corpo ou no seu espírito, seja por meios físicos, seja por meios morais. São, assim, proibidos actos que ofendam a integridade moral de outrem, quer eles sejam levados a cabo pelo próprio Estado (será o caso de o legislador prever uma pena degradante para punir determinada infracção criminal ou de admitir como técnica de investigação, por exemplo, a prova do «soro da verdade»), quer sejam praticados por um particular (por exemplo: actos ofensivos do pudor ou palavras ofensivas da honra ou do bom nome de outrem).

Não é, porém, proibido que a lei «puna» condutas imorais ou desonestas do próprio titular do direito (por exemplo, que sancione com o despejo a exploração da prostituição alheia no local arrendado), quando essas condutas constituam violação de deveres que o próprio assumiu ao celebrar o contrato. E isso, mesmo que tais condutas atinjam aquele que as pratica na sua honra e consideração ou no seu bom nome.

Quando se trate de o locatário destinar o imóvel arrendado à exploração da prostituição alheia, outro tanto sucede com as próprias prostitutas que, acaso, sejam referenciadas, ao fazer-se a prova daquele facto.

Na verdade, o que será desonroso para tais mulheres é a prática da prostituição em si mesma, e não, naturalmente, o facto de elas serem, eventualmente, referidas como frequentadoras do imóvel arrendado para nele se prostituírem.

É, por isso, inteiramente absurdo pretender que a norma em causa — ao prever essas condutas como causa de resolução do contrato — viola o direito à integridade moral do locatário ou das pessoas que vão prostituir-se no local arrendado.

É certo que o mesmo preceito constitucional — dito art. 25º — proíbe também, como já se disse, que, na actividade indagatória do Estado, se lance mão de métodos ou técnicas que atentem contra a integridade moral do homem, pois isso seria desrespeitar a pessoa na sua dignidade ontológica — no que ela é, por conseguinte.

No art. 26º, atrás transcrito, consagra-se um conjunto de direitos que, todos eles, têm de comum o estarem directamente ao serviço da protecção da esfera nuclear das pessoas e da sua vida. São eles: o direito à identidade pessoal, o direito à capacidade civil, o direito à cidadania, o direito ao bom nome e reputação, o direito à imagem e o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar.

No entanto e no tocante ao locatário, não se trata de qualquer intromissão na sua vida privada ou familiar, sim e tão-só de extrair consequências jurídicas de um comportamento seu, violador de um dever contratual (o dever de aplicar o imóvel a um uso normal e honesto) — comportamento que ele adoptou em termos de extravasar aquele âmbito intocável de privacidade. E, no que diz respeito às pessoas que praticam a prostituição no local arrendado — para além de que a sua identificação só excepcionalmente será feita —, são elas também que, com a sua conduta, trazem ao conhecimento alheio aspectos da sua vida pessoal que, de outro modo, permaneceriam na intimidade de suas vidas.

De facto, estabelece-se na al. b) do nº 2 do art. 1422º do CC, sob a epígrafe "Limitações aos exercício de direitos" que é especialmente vedado aos condóminos destinar a sua fracção a usos ofensivos dos bons costumes.

Viola este preceito o condómino que mantém na respectiva fracção autónoma - mediante contrato de arrendamento - mulheres que, angariando os respectivos clientes, exploram a prática da prostituição. Esta actividade provoca indubitavelmente prejuízos graves aos demais condóminos, por se assistir à constante entrada de pessoas estranhas no prédio, com a consequente devassa do imóvel, criando perigo para os condóminos e residentes do imóvel, muitos temendo ser confundidos com os clientes.

Acresce que este afluxo anormal de mulheres e respectivos clientes provoca ainda estrondo das portas da entrada, do elevador e da fracção e pelos ruídos que nesta se produzem, causando vergonha aos condóminos, provoca desgaste anormal da porta de entrada e dos elevadores e consumo excessivo de electricidade, e que a própria imagem do condomínio é prejudicada com os actos descritos, que originam desvalorização das fracções, tornando, além de degradante, perigosa a vivência dos restantes condóminos no edifício.

Tem o administrador legitimidade para agir?

Prescreve a al. e) do art. 6º do CPC que o condomínio resultante do regime da propriedade horizontal tem personalidade judiciária relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador.

Esta disposição deve ter-se articulada com o disposto no art. 1437º, nº 1 do Código Civil (doravante, CC), onde se diz que o administrador pode agir em juízo quer contra qualquer dos condóminos quer contra terceiros, no âmbito da execução dos poderes-deveres que lhe pertencem ou quando devidamente autorizado pela assembleia dos condóminos.

As funções próprias do administrador encontram-se elencadas nas diversas alíneas do art. 1436º do CC. Todavia esta discriminação tem sempre como pressuposto o princípio, decorrente do nº 1 do art. 1430º do mesmo Código, de que quer o administrador, como órgão executivo, quer a assembleia dos condóminos, como órgão deliberativo, na respectiva actuação, apenas podem interferir com a gestão das partes comuns e não com as partes privativas de qualquer dos condóminos (neste sentido, Mota Pinto, in Direitos Reais, 1970/71, pág. 285). 

Esta regra apenas se mostra hoje fissurada, quanto aos poderes da assembleia dos condóminos, pelo nº 4 do art. 1422º do CC, aditado pelo art. 1º do DL 267/94 de 25 de Outubro.

A lei não atribui competências ao administrador tendo como critério abstractos interesses comuns mas antes o interesse por via das partes comuns. Assim como não são atendíveis hipotéticos danos no «condomínio», como ente sujeito de direitos, uma vez que a lei não atribui a este personalidade jurídica, mas tão-só judiciária, no apontado âmbito do art. 6º do Código de Processo Civil.

As limitações ao exercício do direito de propriedade de cada condómino sobre a respectiva fracção, enunciadas nos nºs 1 e 2 do art. 1422 do CC, são ditadas pela natureza específica da propriedade horizontal e pelas especiais necessidades de harmonizar a fruição plena de cada uma das fracções sem afectação ou prejuízo das restantes. Daí que sejam totalmente estranhas às funções do administrador, devendo ser tuteladas em função da iniciativa particular de cada condómino que se ache atingido no respectivo direito.

No específico caso da al. b) do nº 2 do art. 1422º da lei civil estão essencialmente na sua base direitos de personalidade, como o direito à tranquilidade e ao bom nome de cada condómino, que só podem justificar a intervenção do respectivo titular. Sendo certo que é indiscutível que a prática da prostituição pode desde logo integrar o conceito legal de uso ofensivo dos bons costumes, a acção contra o condómino onde ela é exercida não pode ser proposta pelo administrador nem mesmo em execução de deliberação da assembleia dos condóminos porque esta só é eficaz se tiver por objecto partes comuns – cfr. art. 1430º, nº 1 do CC.

Mas, e se a situação descrita se integrar, quer no caso da al. i), quer no caso da al. m), do já mencionado art. 1436º do CC?

Vejamos.

A execução das deliberações da assembleia dos condóminos pressupõe a sua eficácia. E estas só são eficazes se tiverem por objecto partes comuns – art. 1430º, nº 1 – sendo excepção a possibilidade daquele órgão deliberar sobre o uso de fracção autónoma cujo fim não esteja previsto no título constitutivo da propriedade horizontal (cfr. nº4 do art. 1422º do CC). Está, pois, excluída a previsão da referida al. i).

No que concerne à invocada função do administrador de assegurar a execução das disposições legais relativas ao condomínio – al. m) do art. 1436º – pode entender-se que estão aí abrangidas as limitações ao exercício dos direitos dos condóminos do nº 2 do art. 1422º do CC.

Sufragar esta tese seria o mesmo que admitir que o administrador teria poderes que se sobreporiam aos da própria assembleia dos condóminos, atenta a definição que destes vem sendo feita. Aquela alínea – como todas as demais do art. 1436º - também não pode deixar de ser conjugada com o princípio, já enfatizado, de que a actuação do administrador é devida à necessidade de gerir as partes comuns. De resto, a norma do art. 1436º insere-se na Secção IV do Capítulo VI justamente epigrafada «Administração das Partes Comuns do Edifício», não sendo de menosprezar esta referência sistemática. Estando em causa partes privadas terão de ser os condóminos enquanto tais a solicitar a efectivação das mencionadas limitações.

Citando P. de Lima e Antunes Varela no comentário ao nº 2 do art.º 1422 do CC (C. Civil Anotado, Coimbra Editora, 1972, pág. 366), da íntima conexão entre as diversas fracções autónomas integradas na mesma unidade predial «deriva para cada um dos condóminos o direito de, em certas circunstâncias, obrigar os demais a realizar certas obras ou a abster-se da prática de determinados actos».

Destarte, uma eventual acção deve ser proposta pelos condóminos afectados no seu direito de personalidade, sem esquecer que colhe apoio no nº 2 do art. 1422º do CC a ideia de que da íntima conexão entre as diversas fracções autónomas integradas na mesma unidade predial deriva para cada um dos condóminos o direito de, em certas circunstâncias, obrigar os demais a realizar certas obras ou a abster-se da prática de determinados actos.