Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

06 setembro 2024

Mandato sem representação


Tribunal: STJ
Processo: 1070/20.0T8BJA.E1.S1
Relator: Fernando Baptista
Data: 30-11-2022

Descritores:

Acção de reivindicação
Compropriedade
Execução específica
Contrato de mandato
Mandato sem representação
Fiducio Cum Amico
Contrato fiduciário
Boa fé
Princípio da confiança
Bem imóvel
Admissibilidade
Contrato promessa

Sumário:

I. O artigo 830º do Código Civil deve aplicar-se, directa ou indirectamente (por analogia), a todas as obrigações de prestação de facto fungíveis, constituídas por contrato ou pela lei e não apenas às prestações de facto jurídico constituídas na sequência da celebração de um contrato-promessa.

II. No mandato sem representação coexistem duas finalidades: uma imediata que se traduz na prática do acto ou actos por conta do mandante; outra mediata - sendo a razão final do mandato – que consiste na transferência dos direitos adquiridos em execução do mandato.

III. Como tal, tendo o Autor adquirido uma fracção autónoma, na constância do matrimónio com a Ré, mas comprometendo-se para com a Ré a, posteriormente, transferir para esta a propriedade do imóvel, na proporção de metade (que sabia pertencer-lhe), está-se perante um contrato de mandato sem representação (o Autor mandatado pela Ré nessa aquisição: agiu por conta da R, mas em nome próprio; por falta de poderes de representação não agiu em nome da R e os efeitos da compra e venda produziram-se (integralmente) na sua esfera jurídica e não (parcialmente) na esfera jurídica da R., ficando, porém, ele com a obrigação de transferir para a R os direitos adquiridos em execução do mandato), assistindo à Ré o direito a exigir que o Autor transfira para ela a sua quota parte de metade do imóvel.

IV. Recusar, neste contexto factual, à Ré a hetero-tutela pública do seu crédito, forçando-a ao sucedâneo ou alternativa da mera indemnização, seria uma violência que o Direito não deve tutelar.

V. Solução esta que o princípio pacta sunt servanda já aconselharia (enquanto princípio geral no procedimento adequado da praxis contratual) e que o princípio da boa fé (que aquele outro princípio já implica) igualmente tutelava.

Texto integral: Vide aqui

22 agosto 2024

O artigo 1346º do CC


O artigo 1346º do Código Civil tem especialmente em vista as emissões de agentes físicos, com caracter de continuidade ou, pelo menos de periocidade, que tenham a sua fonte em determinado prédio e perturbem a utilização normal do prédio contíguo.

Sentido que está conforme com a fonte do art. 1346º do CC, precisamente o parágrafo 906 do código alemão que dispõe "o proprietário de um prédio não pode proibir a emissão de gazes, vapores, fuligem, calores, ruído, trepidação e análogas intervenções derivadas de outro prédio, na medida em que a intervenção não prejudica a utilização do seu prédio ou só a prejudica de modo não essencial..." (tradução de Vaz Serra, na Rev. Leg., pág. 376).

Daqui que Antunes Varela refira que o artigo 1346º tem especialmente em vista as emissões de agentes físicos, com carácter de continuidade ou, pelo menos, periodicidade, que tenham a sua fonte em determinado prédio e perturbem a utilização normal do prédio contíguo (Rev. Leg., pág. 74).

Antunes Varela dá tal interpretação apoiando-se em Enneccenes - Wolff, Tratado de Derecho Civil, trad. espanhola, volume III, 1, parágrafo 53, páginas 314 e seguintes, sendo certo que o sentido dado por Martin Wolff ao parágrafo 906 corresponde à interpretação que se dá ao artigo 1346, pois diz:

"I. Em certos casos permite-se a produção de gazes, vapores, cheiros, resíduos... que procede de uma coisa e se propaga a outrém (os chamados imponderáveis).
"II. a penetração dos imponderáveis noutra coisa permite-se só numa medida limitada.

Contudo, entre nós, dada a tensão entre dois direitos de propriedade conflituantes que este regime identifica e pretende resolver, não é afirmada uma solução absoluta em favor de qualquer deles. Antes se impõem soluções relativas, em razão dos concretos elementos em conflito, de cada um desses direitos.

Nos termos do art. 1346º do CC, o proprietário de um prédio só tem o direito de proibir outro, de um prédio vizinho, de praticar actos de que resultem emissões de fumos ou fuligem que atinjam aquele seu prédio se dessas emissões advier “um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam”.

A existência de danos, tanto patrimoniais como não patrimoniais, é questão de facto. No entanto, saber se a indemnização fixada pelos danos é não só devida, mas também exagerada, envolve questão de direito.Os danos não patrimoniais são compensáveis quando a sua gravidade o justifique, dependendo a medida da sua satisfação da apreciação das circunstâncias do caso concreto.

Segundo a doutrina da causalidade adequada, para que um facto seja causa de um dano, é necessário, antes de mais, que, no plano naturalístico, ele seja condição sem a qual o dano não se teria verificado; e, depois, que, em abstracto ou em geral, seja causa adequada do dano.

No plano naturalístico, o nexo de causalidade constitui matéria de facto; no plano geral ou abstracto, matéria de direito. A condição deixa de ser causa adequada do dano sempre que, segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele em virtude de outras circunstâncias extraordinárias.

Por via do regime prescrito pelos arts. 1346º e 1347º do CC, a limitação do direito de propriedade de alguém sobre o seu prédio, através da inibição de actos a praticar no local ou da construção de instalações cujo destino compreende o risco de agressão do direito de propriedade de outrem sobre o seu próprio prédio, justifica-se na ponderação e na prevalência deste último. Em suma, proíbe-se o exercício do direito de propriedade sobre um prédio em modalidades que provoquem ou comportem o risco de provocar determinados prejuízos para o exercício, por outrem, do seu próprio direito de propriedade sobre um seu prédio.

Diz a primeira destas normas: "O proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam."

Por sua vez, aquele art. 1347º (Instalações prejudiciais), dispõe:

"1. O proprietário não pode construir nem manter no seu prédio quaisquer obras, instalações ou depósitos de substâncias corrosivas ou perigosas, se for de recear que possam ter sobre o prédio vizinho efeitos nocivos não permitidos por lei.
2. Se as obras, instalações ou depósitos tiverem sido autorizados por entidade pública competente, ou tiverem sido observadas as condições especiais prescritas na lei para a construção ou manutenção deles, a sua inutilização só é admitida a partir do momento em que o prejuízo se torne efectivo. (...)."

É consabida a ratio legis destas disposições legais: a limitação do direito de propriedade de alguém sobre o seu prédio, através da inibição de actos a praticar no local ou da construção ou manutenção de instalações cujo destino compreende o risco de agressão do direito de propriedade de outrem sobre o seu próprio prédio, justifica-se na ponderação e na prevalência do conteúdo deste último. Em suma, proíbe-se o exercício do direito de propriedade sobre um prédio em modalidades que provoquem ou comportem o risco de provocar determinados prejuízos para o exercício, por outrem, do seu próprio direito de propriedade sobre um seu prédio.

Dada a tensão entre dois direitos de propriedade conflituantes que este regime identifica e pretende resolver, não é afirmada uma solução absoluta em favor de qualquer deles. Antes se impõem soluções relativas, em razão dos concretos elementos em conflito, de cada um desses direitos.

Assim, nos termos do art. 1346º do CC, o proprietário de um prédio tem o direito de proibir outro, de um prédio vizinho, de praticar actos de que resultem emissões de fumos ou fuligem (hipóteses que aqui exclusivamente nos interessam) que atinjam aquele seu prédio. Mas esse direito não é absoluto. Na medida em que isso limita o direito de propriedade do vizinho, esse direito só lhe é conferido se dessas emissões advier “um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam.”

Tem havido discussão sobre se tais requisitos são cumulativos ou alternativos. Menezes Cordeiro (Direitos Reais, 1979) defende a necessidade da sua verificação simultânea. Oliveira Ascensão (Reais, 1983) pronuncia-se no sentido da sua alternatividade, à semelhança de alguma jurisprudência (Ac. do TRC de 11-09-2012, proc nº 24/08.0TBMGL, em dgsi.pt).