Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

08 maio 2021

Interpretação de Acórdãos

Constitui um princípio básico da ciência do direito que o mérito de uma interpretação jurídica advém não do número de decisões que a subscrevem mas antes da qualidade e sustentabilidade dos respectivos argumentos, onde a regra é a de que o intérprete deve presumir que o legislador consagra as soluções mais acertadas e que sabe exprimir o seu pensamento. 

Assim, o acto de interpretar uma norma consiste em fixar o sentido e o alcance com que há-de valer, determinando o sentido decisivo. Portanto, a letra da norma é o ponto de partida de toda a interpretação, constituindo a apreensão literal do texto já interpretação, embora incompleta, tornando-se depois necessária uma tarefa de interligação e valoração que escapa ao domínio literal.

Na actividade interpretativa, a lei funciona simultaneamente como ponto de partida e limite de interpretação, sendo-lhe assinalada uma dimensão negativa que é a de eliminar tudo quanto não tenha qualquer apoio ou correspondência ao menos imperfeita no texto (cfr. art. 9º, nº 2, do CC).

Nesta tessitura, importa sublinhar que a lei é, antes de mais, um ordenamento de relações que mira a satisfação de certas necessidades e deve portanto interpretar-se no sentido que melhor corresponda a essa finalidade de forma a que, em toda a plenitude, assegure tal tutela.

Conforme refere Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, 4.ª ed., 1987, p. 128, 'entender uma lei, portanto, não é somente aferir de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direcções [...]/a missão do intérprete é justamente descobrir o conteúdo real da norma jurídica, determinar em toda a plenitude o seu valor, [...] reconstruir o pensamento legislativo./Só assim a lei realiza toda a sua força de expansão e representa na vida social uma verdadeira força normativa'.

Subjaz a esta matéria que na tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal intervêm elementos sistemáticos, históricos, racionais e teleológicos, onde, o elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam questões paralelas. O elemento sistemático compreende ainda a concordância da norma com o espírito ou a unidade intrínseca do sistema.

Por seu turno, o elemento racional ou teleológico consiste pois na razão de ser da norma, isto é, no fim visado pela edição da norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar.

Destas sortes, o intérprete deve procurar consiliar tais elementos numa tarefa de conjunto de modo a melhor descobrir o sentido decisivo da norma, pelo que, findo o seu trabalho hermenêutico, pretende-se que o intérprete atinja uma das seguintes modalidades de interpretação: declarativa, extensiva ou restritiva.

Na primeira, o intérprete limitar-se-á a eleger o sentido literal ou um dos sentidos literais que o texto directa e claramente comporta, por esse caber no pensamento legislativo.

Na segunda, o intérprete reconhecerá que o legislador foi traído pelas palavras que utilizou, já que o sentido da norma ultrapassa o que resulta estritamente da letra. Nesse caso, para obedecer à letra da lei, o intérprete deve procurar uma formulação que traduza correctamente a regra contida na lei (cfr. Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 11.ª ed., Almedina, 2001, p. 409).

E na terceira, o intérprete reconhecerá que o legislador utilizou uma forma demasiado ampla, quando o seu sentido é mais limitado, pelo que deve restringir-se o texto para exprimir o verdadeiro sentido da lei.

Por tudo o supra exposto e à luz dos seus ensinamentos, pode-se considerar que a generalidade das decisões dos Acórdãos dos nossos tribunais não se confundem com os Acórdãos de Fixação de Jurisprudência ou de Uniformização de Jurisprudência.

07 maio 2021

Limitar numero procurações

A procuração é um instituto reconhecido no nosso ordenamento jurídico (cfr. os art. 262º e segs. do CC) que tem também aplicação no âmbito da propriedade horizontal (cfr. art. 1431º nº 3 do CC).

Quanto à qualidade do procurador:

O art. 1431º, nº 3 apenas refere que "Os condóminos podem fazer-se representar por procurador", sem concretizar se este procurador tem de ser outro condómino ou se pode ser um terceiro. Neste concreto, a possibilidade de representação por outro associado está prevista no art. 176º, nº 1: "O associado não pode votar, por si ou como representante de outrem, nas matérias em que haja conflito de interesses entre a associação e ele, seu cônjuge, ascendentes ou descendentes."

Deste preceito infere-se que o legislador ao referir «representante de outrem», refere-se a outro associado porquanto a assembleia não é pública, é associativa e nela apenas participam os respectivos associados. No entanto não se vê razão para impedir a representação por um terceiro. No entanto, ressalva-se a hipótese de, no âmbito da liberdade de auto-regulação e auto-gestão, os estatutos determinarem de outra forma e, designadamente, de fixarem o princípio de que somente associados podem estar presentes na assembleia geral.

Ora," segundo o princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição, no caso de normas polissémicas ou plurissignificativas, deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a Constituição" (cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, pp. 1226 e 1227).

Ou seja, o elemento sistemático da interpretação que atende à unidade do sistema jurídico - que tem, por natureza, no topo a própria Constituição - é decisivo a favor da interpretação que se propugna, fluindo de todo o exposto que deverá fazer-se uma interpretação extensiva do art. 175º do CC de molde a concluir que a alusão a associados presentes abarca a presença jurídica através do instituto da representação. Interpretação contrária colide com a liberdade de associação consagrada na Constituição.

No regime da propriedade horizontal, face a igual princípio, o procurador poderá ser qualquer pessoa, condómino ou não, sendo que continuam a valer as limitações à utilização da procuração que decorrem do art. 176º, nº 1, nos termos do qual, e com a devida analogia, o condómino não pode votar, por si ou como representante de outro, nas matérias em que haja conflito de interesses entre o condomínio e ele, seu cônjuge, ascendentes ou descendentes.

O elemento sistemático da interpretação é claramente abonatório da interpretação aqui havida defendida.

Quanto ao número de procurações:

Face à omissão da lei pode ocorrer o risco de - no limite - a assembleia geral poder decorrer só com um condómino ou com um número de condóminos muito limitado ou até de as procurações ficarem na posse do administrador que, por força daquelas, se apossariam do querer colectivo, perigando a genuína democraticidade das decisões que se pretendem colegiais.

Assim, na aplicação do direito, importa procurar soluções razoáveis que se sobrelevem na procura de uma verdade apodíctica, onde a noção do razoável tenha sobretudo que ver com critérios sociológicos. Assim é razoável perguntar: deve o Regulamento impor um limite ao número de procurações?

A resposta só pode ser afirmativa, porque na verdade, não poderá deixar de se reconhecer a possibilidade de optar por uma solução organizativa e procedimental que assegure a democraticidade do debate por via de uma regra normativa que imponha tais limitações sem contudo restringir a salvaguarda do direito de representação.

Pelo exposto, podem os condóminos em sede de regulamento disciplinar que um condómino ou terceiro só pode ser portador de um determinado número de procurações e/ou que o administrador não é elegível como representante.

Quanto à forma:

Pese embora haja muita gente com opinião publicada, onde defendem que as procurações devem ser reduzidas a escrito, sob pena de se considerarem inexistentes, o que, em bom rigor, não corresponde à verdade dos factos, como resulta da decisão do Ac. TC nº 18/2006: "A representação é uma possibilidade geral de qualquer ordem jurídica moderna: só deve ser afastada perante normas expressas que o determinem. Segundo o artigo 262º, nº 2, a procuração nem teria de assumir qualquer forma solene."