Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

12 maio 2025

Uso exclusivo terraço


Tribunal: Relação de Coimbra
Processo: 297/03.4TBBGRD.C1
Data: 29-05-2007

Sumário:
 
I - A situação jurídica dos imóveis, como objecto de um direito real, é definida pelo título de que este direito emerge, e não por qualquer negócio com eficácia meramente obrigacional nem, muito menos, pelo projecto de construção do edifício, ainda que aprovado pela administração pública.
II - Na ausência de definição sobre o fim a que se destina – no título constitutivo ou no regulamento do condomínio – o terraço, como parte comum na propriedade horizontal, pode ser usado em exclusivo pelo último morador, se a construção do edifício assim o consente, não obstante ser propriedade dos condóminos.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A... e mulher B... demandam, na comarca da Guarda, C... e mulher D... , pedindo a condenação dos réus a reconhecer que o terraço do prédio identificado na petição inicial e do qual são titulares de fracções autónomas, é parte comum; a reporem a porta inicialmente existente, por forma a que tenham acesso directo ao terraço; e a absterem-se de praticar quaisquer actos que obstem a que o terraço seja propriedade comum;
Alegam, em síntese, que são titulares da “fracção A”, que compreende o rés-do-chão direito, 2.º e 3.º andares do prédio e que os réus são titulares da “fracção B”, que compreende o rés-do-chão esquerdo, 1.º, e 4.º andar e sótão para arrumações.
Acontece que os réus têm vindo a impedir o acesso dos autores ao terraço de cobertura do prédio, que estes entendem ser parte comum, e ao qual tinham acesso por uma porta cuja utilização os réus lhes vedaram.

2. Os réus contestaram, opondo, também em síntese, que, apesar do título constitutivo só lhes atribuir a titularidade da fracção B que compreende o rés-do-chão esquerdo, 1.º, e 4.º andar e sótão amplo para arrumações, o certo é que, por acordo, autores e réus alteraram o projecto inicial e, por virtude dessa alteração, ficou a pertencer-lhes o último piso do edifício que passou a ser composto por cozinha, arrumos, casa de banho e varanda, correspondendo esta ao que no projecto inicial era o terraço do prédio. E ainda que, em face disso, adquirira, por usucapião todo esse terraço.

3. No prosseguimento da causa veio a realizar-se a audiência de julgamento, posto o que foi proferida sentença que apenas condenou os réus a reconhecerem os autores como donos da fracção A, absolvendo-os de tudo o mais que era pedido, o que corresponde, na prática, à improcedência da acção.
Os autores não se conformam e apelam a esta Relação, concluindo:
1) O Tribunal " a quo” faz uma arbitrária e subjectiva análise interpretação dos factos.
2) Os Juízes têm de fazer uma análise critica integrada dos depoimentos e documentos, atendendo ás garantias de imparcialidade, seriedade, razão da ciência.
3) Devem ser dados como provados os pontos 3, 4, 5, 7, 8, 9, 10,11, 12, 13, e 14 constantes da Base instrutória.
4) Devem ser dados como não provados os factos dos pontos 23, 24,30,31,32 e 33.
5) Devem os réus reconhecer o terraço como parte integrante e comum do prédio constituído em propriedade horizontal.
6) Em conformidade com as disposições legais que sustentam o regime da Propriedade Horizontal, e face ao disposto na Escritura Pública de constituição da Propriedade Horizontal, dever-se-á proceder à realização de obras, por responsabilidade do condomínio, de forma a criar uma porta de acesso ao terraço (com base no projecto de obra original), por forma a respeitar o disposto no art. 1415°CC (fracção autónoma com saída própria para uma parte comum do edifício).
7) Devem os réus abster-se de praticar todos e quaisquer actos que obstem ao reconhecimento de que o terraço é parte comum do prédio.
8) A sentença recorrida viola as mais elementares normas Jurídicas.

4. Os apelados contra-alegaram em defesa do julgado. Estão colhidos os vistos. Cumpre conhecer e decidir.
Entretanto vejamos os factos que vêm dados como provados da 1.ª instância, seguindo a mesma ordem e numeração.
A. Os autores são donos e legítimos proprietários do seguinte prédio: “Fracção A”, sita na Rua X..., correspondente ao rés-do-chão direito, que serve de garagem, com uma casa de banho; segundo andar com seis divisões, cozinha e duas casa de banho, terceiro andar com 4 divisões, cozinha e duas casa de banho, inscrita na matriz predial da freguesia de Santa Maria, Manteigas sob o artigo 861 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Manteigas, freguesia de Santa Maria sob o 00003/100185/ A e inscrito a favor dos autores pela inscrição G1.
B. Os réus são donos e legítimos proprietários do seguinte prédio: “Fracção B”, sita na Rua X..., correspondente ao rés-do-chão esquerdo, que serve de garagem, com uma casa de banho; primeiro andar com cinco divisões, cozinha e duas casa de banho, quarto andar com 4 divisões, cozinha e duas casa de banho, e sótão amplo para arrumações, inscrita na matriz predial da freguesia de Santa Maria sob o artigo 861, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Manteigas, freguesia de Santa Maria sob o n.º 00003/100185/B e inscrito a favor dos autores pela inscrição G1.
C. Tais fracções resultaram da constituição em propriedade horizontal do prédio urbano, sito na R. X..., composto de casa de habitação com r/chão direito e esquerdo, 1, 2, 3 e 4 andares e sótão amplo, com área coberta de 165 m 2 - L. 35 m2, inscrito na matriz predial da freguesia de S. Maria sob o artigo 861, de que autores e réus eram comproprietários na proporção de metade, por escritura de constituição de propriedade horizontal e divisão outorgada no Cartório Notarial de Manteigas em 17 de Janeiro de 1985 e exarada a fls 10 do L 137.
D. Tal prédio foi construído por autores e réus, num prédio rústico denominado Santo Estevão ou Tanque, destinado a construção urbana, com a área de 200 m2 e fazendo parte do inscrito na matriz predial sob o artigo 802 da freguesia de Santa Maria.
E. O prédio descrito em D) foi adquirido por autores e réus por compra a E... e mulher F... e inscrito na Conservatória do Registo Predial pela apresentação 2/100185.
F. Nos termos da escritura de constituição de propriedade horizontal junta a fls l0, cujo teor se dá por reproduzido, acordaram autores e réus que “São partes comuns do edifício as escadas de acesso e as previstas no n.º 1 do artigo 1421.º do Código Civil”.
G. A antena de televisão está colocada no terraço junto à chaminé.
H. E todos os circuitos de distribuição da rede de televisão.
I. Os réus deslocaram-se a Portugal onde permaneceram cerca de 10 dias.
J. Os autores e réus alteram o projecto inicial do prédio, em 1983.
L. Por força dessa alteração o último piso do prédio passou a ser constituído por casa de banho, arrumos, cozinha e terraço.
M. E o acesso ao terraço passou a ser feito pela cozinha.
N. O sótão ficou a pertencer à fracção B porque a fracção A tinha o rés-do-chão maior e dois pisos seguidos, valorizando-o
O. E o 1.° andar da fracção B está enterrado.
P. A porta de acesso ao sótão é a mesma que existia em 1982.
Q. Colocada antes do projecto de alterações.
R. Os réus possuem em exclusivo o último piso desde a construção, em 1982 .
S. Sem oposição de quem quer que fosse.
T. À vista de todos, incluindo os autores.
U. De forma contínua, sempre que vêm a Portugal.
V. E na convicção de serem dele legítimos proprietários.
W. Os réus tiveram conhecimento da alteração do projecto.
X. Os réus deslocaram-se a Portugal;
Y. Os réus pagarão honorários ao seu mandatário;

5. O que os autores pretendem com esta acção é que se reconheça ser parte comum do prédio o terraço – que tudo indica ser de cobertura do prédio – e que os réus sejam condenados a facultar-lhes o acesso a esse terraço, já para ter acesso às coisas comuns que aí estão, tais como a antena colectiva e equipamento de distribuição de sinal de televisão e arranjos necessários do isolamento da cobertura do prédio, para evitar infiltrações de águas pluviais, queixando-se mesmo de humidades na sua fracção que exigem uma intervenção desse tipo e a atitude dos réus o impedem.
A posição dos réus é que todo esse piso superior lhes pertence, quer porque uma parte – o sótão para arrumações já integra a sua fracção, quer porque adquiriram o terraço por usucapião, em virtude duma posse em nome próprio a partir do acordo que fizeram com a alteração do projecto de construção.
Não lhes tendo dado razão, a 1.ª instância rejeitou a pretensão dos autores e aceitou a posição dos réus, configurando-a como uma defesa por excepção, já que, apesar de intitularem o seu articulado de “contestação reconvenção”, não formularam qualquer pedido reconvencional, nem mesmo após advertência do sr. Juiz.
Agora, em recurso, os autores apelantes resumem a sua discordância a duas questões: i) alteração da matéria de facto, por erro de julgamento, de forma a que se dê como provados os factos que suportam a compropriedade do terraço e não provados os factos que suportaram a declaração de propriedade exclusiva desse mesmo terraço; ii) que se realizem as obras necessárias (abertura da porta de acesso directo ao terraço) para evitar a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal.

6. Digamos, desde já, que a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal não consta dos articulados e não foi, por isso mesmo, apreciada em 1.ª instância, pelo que é uma questão nova e a Relação só reaprecia decisões já proferidas e não conhece de novas questões. Logo, tudo o que envolva uma tomada de posição sobre a validade ou nulidade do título constitutivo não vai ser aqui e agora apreciado.
Resta, então, a 1.ª questão – saber se o terraço é propriedade comum ou exclusiva dos réus – pela confirmação ou alteração da matéria de facto decidida em 1.ª instância.
E a resposta é não. Não é propriedade exclusiva dos réus. E não é porque a decisão que o declara tem como pressuposto a usucapião e a usucapião é a posse mantida por certo lapso de tempo que faculta ao possuidor a aquisição do direito (artigo 1287.º do Código Civil). A posse é um conceito de direito. À base instrutória foi levado o ponto 29, assim redigido: “ os réus possuem em exclusivo o último piso desde a construção, em 1982?”. A resposta foi: provado.
Ora esta resposta decidia a acção. Não seria preciso mais nada. E não pode ser assim, como é óbvio. Pretendeu-se responder a um pretenso facto, quando na verdade se respondeu a uma questão de direito. Logo a consequência é que se tem por não escrita a resposta que o tribunal deu a esse quesito, como resulta expressamente do artigo 646.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.
Só por aqui se fica com a noção exacta de que não ficou provada a posse exclusiva dos réus sobre o terraço. Logo, não há usucapião; não há aquisição da propriedade exclusiva por esse modo de adquirir. Por conseguinte não importa rever a prova sobre os restantes factos reclamados pelos apelantes.
Por outro lado está dado como provado o que consta do título constitutivo – escritura de constituição de propriedade horizontal junta a fls l0 – “são partes comuns do edifício as escadas de acesso e as previstas no n.º 1 do artigo 1421.º do Código Civil”. E o artigo 1421.º, n.º 1, b) inclui no elenco das partes comuns dos edifícios em regime de propriedade horizontal os terraços de cobertura. Logo o questionado terraço constitui parte comum do edifício.
A este propósito convirá anotar o que escrevem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela ( 1): nestes casos “prevalece sempre o que resultar do título constitutivo, dada a natureza real do estatuto que nele se contém. A situação jurídica do imóvel, como objecto de um direito real, é definida pelo título de que este direito emerge, e não por qualquer negócio com eficácia meramente obrigacional (…) nem, muito menos, pelo projecto de construção do edifício, ainda que aprovado pela administração pública”. Também a jurisprudência tem sido nesse sentido. (2 )

7. Claro que isto ainda não resolve o problema dos autores, dado que fica por definir o pretenso direito de acesso ao terraço, porque uma coisa é uma parte do prédio ser comum e outra é o fim a que se destina essa parte comum, que tanto pode ser definido no título constitutivo (artigo 1418.º, n.º 2, a) e b) do Código Civil), como no próprio regulamento do condomínio, quando elaborado pela assembleia de condóminos (artigo 1429-A do Código Civil).
Sendo cada condómino proprietário da fracção que lhe pertence, (artigo 1420.º, n.º 1 do Código Civil) os direitos inerentes estão definidos no respectivo regime jurídico da propriedade em geral, com as especificidades da propriedade horizontal; mas sendo comproprietário das partes comuns, o uso das mesmas depende do fim a que se destinam, podendo até haver partes comuns dotadas de autonomia, assim como podem ser atribuídos aos comproprietários de determinadas fracções autónomas direitos especiais de uso sobre certas coisas comuns (3 ).
A este propósito é elucidativa a seguinte passagem escrita pelo saudoso Prof. Mota Pinto “o terraço na propriedade horizontal, mesmo quando destinado ao uso do último morador – mesmo quando este o pode utilizar para recreio ou usos vários – é propriedade dos condóminos. E, por exemplo, um direito de construir sobre ele é um direito de que dispõe a comunidade, e não apenas o proprietário do último andar”. ( 4 )
Aliás é assim que acontece, de um modo geral, com o último patamar das escadas de qualquer condomínio, que normalmente só é utilizado pelo último morador, sem prejuízo de qualquer um aí poder aceder.
É esta a diferença entre o direito de compropriedade do condómino no regime da propriedade horizontal e o de uso que cada um pode fazer de partes comuns.
No caso dos autos, o modo como o edifício está construído em consequência da alteração do projecto por acordo dos condóminos, apenas permite, ao que parece, que só os réus consigam aceder directamente da sua fracção ao terraço, relativamente ao qual o título é omisso quanto ao fim a que se destina e não consta que haja regulamento sobre o seu uso.
Não obstante, os autores não deixam de ser comproprietários do terraço. O que acontece é que, ao que parece por culpa própria, não têm condições de acesso ao terraço. E também não tem apoio legal a sua pretensão de obrigar os réus a fazer obras na própria fracção (repristinando o projecto inicial) que permitam o acesso dos autores ao terraço. Claro que sem prejuízo do direito de passagem forçada momentânea a que se refere o disposto no artigo 1349.º do Código Civil, efectivado através do processo de suprimento regulado no artigo 1425.º do Código de Processo Civil.
E se porventura os autores entendem que esta situação é causa de anulação do título constitutivo da propriedade horizontal, só lhes resta seguir o caminho indicado no artigo 1416.º, 1 e 2 do Código Civil, certos de que esta acção não o tem por objecto.
Podemos então concluir que:
- A situação jurídica dos imóveis, como objecto de um direito real, é definida pelo título de que este direito emerge, e não por qualquer negócio com eficácia meramente obrigacional nem, muito menos, pelo projecto de construção do edifício, ainda que aprovado pela administração pública.
- Na ausência de definição sobre o fim a que se destina – no título constitutivo ou no regulamento do condomínio – o terraço, como parte comum na propriedade horizontal, pode ser usado em exclusivo pelo último morador, se a construção do edifício assim o consente, não obstante ser propriedade dos condóminos.

8. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, em consequência do que revogam, em parte, a sentença recorrida e declaram que o terraço do prédio identificado nos autos é parte comum, condenando-se os réus a reconhecê-lo e a abster-se de praticar quaisquer actos que obstem a esse reconhecimento, mantendo-se a absolvição quanto ao pedido de condenação de repor a porta que, no projecto inicial, dava aos autores acesso directo ao terraço.
Custas, em ambas as instâncias, na proporção de decaimento.
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(1) Código Civil anotado, 2.ª edição, vol. III, págs.412
(2) Veja-se, entre muitos outros, o acórdão desta Relação, de 21-11-1989, sumariado no BMJ, 391.º- 712
(3) Cfr. P. Lima e A. Varela, ob. Cit. 411
(4) Direitos Reais, 1970/71, 286, nota 58

Obras terraço cobertura


Tribunal: Relação de Lisboa
Processo: 1069/14.6TBOER.L1-7
Data: 28-02-2023

Sumário:

I – Não ocorre a nulidade a que se reporta o art.º 615º nº1 d) do Código de Processo Civil, decorrente de o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, se na decisão sobre a matéria de facto tiverem sido omitidos (não constando da matéria provada, nem da não provada) factos integrantes da causa de pedir.

II – Tal omissão gera, apenas, erro no julgamento da matéria de facto, a apreciar no âmbito da impugnação da decisão de facto proferida pelo tribunal a quo.

III – Num prédio constituído em regime de propriedade horizontal, mesmo que um terraço de cobertura se encontre afecto ao uso exclusivo de uma fracção, as obras destinadas a obviar a um defeito de construção desse terraço e a assegurar a sua função enquanto cobertura são da responsabilidade de todos os condóminos, em consonância com o art.º 1424º nº1 do Código Civil.

IV – É lícito a um condómino efectuar obras nas partes comuns do prédio, desde que preenchidos os requisitos do art.º 1427º do Código Civil, cabendo-lhe em tal caso o direito ao reembolso da quantia que tiver despendido, descontada da quota que lhe couber, de acordo com o art.º 1424º nº1, do mesmo diploma.

V – A omissão dos deveres de conservação e reparação das partes comuns por parte do condomínio geram a obrigação de indemnização, nos termos da responsabilidade civil extracontratual, dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo condómino que se viu, em consequência de tal omissão, impedido de fruir plenamente da sua fracção.

Texto integral, vide aqui