Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

15 julho 2024

Quarta parte do rendimento colectável


A fixação de penalidades por atraso no cumprimento da obrigação de pagamento de quotas de condomínio, ou de outras obrigações dos condóminos, vem prevista no nº 1 do art. 1434º do CC. Estas “penalidades”, têm duas funções ou objetivos: (a) pressionar os condóminos ao cumprimento e, também, (b) estabelecer a compensação (indemnização) a que o condomínio tem direito em caso de mora ou incumprimento.

Tratando-se, de uma efetiva cláusula penal moratória, a sua fixação está também sujeita ao disposto nos art. 811º e 812º do CC. Em conformidade com estes normativos, pode a cláusula penal ser reduzida equitativamente quando o seu valor se revelar manifestamente excessivo (nº 2 do art. 812º).

O nº 2 do art. 1434º do citado código, norma de natureza imperativa, fixa um limite máximo às penalidades aplicáveis em cada ano. Esse limite corresponde “à quarte parte do rendimento coletável anual da fração do infractor”.

Como se sabe, o rendimento coletável correspondia a um conceito de natureza fiscal, no âmbito do Código da Contribuição Predial, e que desapareceu do ordenamento jurídico com a aprovação do Código da Contribuição Autárquica (através do DL 422-C/88, de 30.11), dando lugar, para efeitos de tributação de imóveis, à figura do “valor patrimonial”. Contudo, são realidades distintas não podendo esta, sem mais, substituir aquela. 

Na verdade, o rendimento coletável anual correspondia à utilidade económica que os prédios proporcionavam ou eram suscetíveis de proporcionar aos seus proprietários – quer em caso de recebimento de rendas, quer em caso de fruição pelo próprio -, considerando o período de um ano, e que, enquanto receita, constituía a base de cálculo do imposto ou coleta a pagar. 

O “valor patrimonial” corresponde ao efetivo valor do prédio apurado segundo parâmetros legais e constitui a referência para aplicação de uma taxa variável (entre 0,5 e 0,8) cujo produto corresponde ao imposto a pagar. Estes parâmetros de avaliação contêm-se, atualmente, no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), aprovado pelo DL nº 287/2003, de 12-11, cujo art. 31º revogou expressamente o Código da Contribuição Autárquica (e as normas, ainda vigentes à data, do Código da Contribuição Predial).

Não obstante a dissemelhança dos conceitos, a doutrina e a jurisprudência têm convergido no sentido de que, pese embora a referência a “rendimento coletável”, não existe revogação tácita daquele art. 1434º “ou necessidade do mesmo ser interpretado ou integrada qualquer lacuna, fazendo antes apelo ao regime transitório previsto no art. 6º do DL .º 442-C/88, de 30 de Novembro, que aprovou o Código da Contribuição Autárquica” (veja-se Ac. do TRL, do Relator Tomé Gomes, Proc.984/10.OXVLSB.l1-7, proferido em 13.11.2012, publicado em www.dgsi.pt).

Segundo o nº 1 do art. 6º do DL 422-C/88, de 30 Novembro, que, como se disse, era uma disposição destinada a salvaguardar a transição de regimes:

1 - O valor tributável dos prédios urbanos, enquanto não for determinado de acordo com as regras do Código das Avaliações, será o que resultar da capitalização do rendimento colectável, actualizado com referência a 31 de Dezembro de 1988, através da aplicação do factor 15.
2 - O rendimento colectável dos prédidos urbanos não arrendados, reportado a 31 de Dezembro de 1988, é desde já objecto de uma actualização provisória de 4% ao ano, cumulativa, com o limite máximo de 100%, desde a última avaliação ou actualização, não se considerando para o efeito a que resultou da aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 69.º da Lei n.º 2/88, de 28 de Janeiro.

Acompanhando o citado Acórdão, temos que, partindo desta base, cabe ao tribunal “ ponderar, em cada caso concreto, se a sanção pecuniária fixada pela assembleia de condóminos ultrapassa o limite máximo que resulta do nº 2 do art. 1434º do CC, nomeadamente apelando ao valor tributável conhecido com referência ao ano mais próximo, sujeito ao factor 0,15 e, nos termos do nº 2 do art. 1434.º do CC, encontrar a quarta parte do mesmo, daí resultando o limite anual máximo da sanção, independentemente do número de infracções.”

A título ilustrativo, o documento evidencia que o valor patrimonial tributável da fracção foi de €93.572,13, em 2012. Admitindo-se que este valor foi fixado em 2010, sendo igual em 2011, anos em que ocorreram as faltas de pagamento de quotas de condomínio, cabe, então multiplicá-lo pelo fator 0,15. Obtém-se o montante de €14.035,82 e calcula-se a quarta parte deste valor, apurando-se um resultado de €3.508,95. Este é, à luz restrita do nº 2 do art. 1434º do CC, o valor máximo da penalidade exigível, em cada ano e independentemente do número de infrações por ele praticadas.

Havendo embora quem entenda que o limite a que alude o art. 1434º/2 do CC, deve ser calculado em função da colecta resultante da aplicação da taxa municipal ao valor patrimonial não cremos, com o devido respeito, que seja a melhor solução. Na verdade, estas taxas de imposto podem variar - segundo decisão da Assembleia Municipal - entre 0,5% e 0,8% (cfr. art. 112º do CIMI) – e esse facto, retira consistência, uniformidade e objectividade ao conceito o que, salvo melhor opinião, introduz desarmonia e desequilíbrio no sistema.

Mas será que a exigência de uma tal cláusula penal, apesar de se conter dentro dos limites legais do nº 2 do art. 1434º do CC, não é, à luz de juízos de equidade, manifestamente excessiva e não deve ser reduzida como preceitua o art. 812º do CC?

Prevê este normativo que a cláusula penal possa ser reduzida pelo tribunal de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente. O mesmo sucede nos casos em que a obrigação tenha sido parcialmente cumprida.

Há também convergência da doutrina e da jurisprudência no sentido de que cabe ao Demandado invocar, fundadamente, a desproporcionalidade da cláusula. Essa apreciação pode ocorrer por força do art. 26º da LJP.

Vejamos, então.

A obrigação cujo cumprimento aqui se exige tem natureza pecuniária. Nas obrigações pecuniárias, o devedor que não cumpra atempadamente incorre na obrigação de indemnizar o credor pelo dano que lhe causou. Essa indemnização corresponde aos juros de mora, à taxa legal, desde a data do incumprimento até integral pagamento (cfr. art. 804º a 806º do CC). A taxa de juros de mora legal corresponde a 4%.

Se no caso relatado tivesse sido aplicada a taxa de juros legal, a penalidade a cargo do Demandado, relativamente ao ano de 2010, em que as quotas não pagas perfaziam €220,64 e foram pagas antes do final de junho de 2013, rondaria os €22. Este montante é de tal forma irrisório que a sua mera aplicação como sanção pecuniária lhe retiraria toda a força dissuasora de abusos de falta de pagamento. Na verdade, como já se disse, a fixação de uma cláusula penal estabelecida para o atraso no pagamento tem uma dupla função coercitiva e indemnizatória.

Na PH, a cláusula penal tem o objectivo de punir os inadimplentes não só pela falta de entrega, em si, de receitas que pertencem ao condomínio mas, sobretudo, pelos prejuízos que a todos causa a falta de contribuição de alguns para a gestão e conservação das partes comuns do prédio, desde a limpeza dos espaços comuns até à realização de obras de conservação, por vezes, de caráter urgente. E a falta de cumprimento é, ainda, grave num condomínio, porquanto é geradora de mau estar nas relações entre os comproprietários, comprometendo, muitas vezes, o bom funcionamento das assembleias e a sã discussão de temas do interesse de todos. Neste enquadramento não se afigura adequado que a cláusula penal se limite aos juros moratórios à taxa legal; ela deve ser mais gravosa.

Uma cláusula penal que impõe o pagamento de €5 por cada mensalidade em atraso e por cada mês em que perdurar o atraso desde que este seja superior a 90 dias não se nos afigura, na perspectiva simples do montante fixado, exagerada. Todavia, quando o atraso corresponde a várias quotas e perdura por vários meses ela é suscetível de conduzir a valores exorbitantes, que ultrapassarão largamente o prejuízo efetivamente sofrido, pois não está sujeita a um limite máximo que interrompa a contagem da penalidade; antes se verifica que continuará a contar-se ad eterno, enquanto não ocorrer o pagamento. Por outro lado, esta penalidade é igual para todos os condóminos independentemente do valor das quotas a cargo de cada um, o que impede que cada um seja penalizado na proporção do prejuízo efetivamente causado com o atraso. Convenhamos que, embora do ponto de vista da conduta em si, tanto seja censurável a falta de pagamento de uma quota de €20 como uma de €40, já causará mais danos na gestão do prédio a falta de pagamento da segunda.

Voltando à situação concreta, apuramos que no caso do Demandado - a quem competia pagar em 2010 uma quota mensal de €27,58 e a quem está a ser exigida uma penalidade de €5 por cada mês de atraso - a penalidade representa um valor correspondente a 18,13% por cada mês de mora, o que, feitas as contas, vem a corresponder a uma taxa de juros anual de 217,56%. Num segundo ano de mora, a taxa passa a ser de 435,12% e em três anos e meio é de 543,9% que é, sensivelmente, o que vem imputado ao Demandado relativamente às quotas vencidas em 2010 e pagas em 2013.

Vista nesta perspetiva, a cláusula penal em estudo revela-se, em termos de equidade, manifestamente excessiva. É que, não pode a sanção ser de tal forma pesada que exceda os normais ditames da vida em sociedade, podendo tomar-se como referência outras actividades em que a mora no cumprimento de uma obrigação pecuniária e os danos daí resultantes são antecipadamente calculados, mantendo-se um equilíbrio entre o sancionamento eficaz e a manutenção da sanção em limites que não levem ao desencorajamento da liquidação ainda que atrasada.

No caso presente, em face da desproporção da taxa de juro anual, a que efetivamente corresponde a aplicação da sanção de €5/mês, perante o regime geral da mora, justifica-se a redução equitativa de tal sanção por se revelar manifestamente excessiva (vide art. 812º do CC).

Note-se que, não havendo redução, permite-se, na prática, um verdadeiro enriquecimento do condomínio sem causa justificativa e à custa dos seus comproprietários pois os montantes recebidos situar-se-iam muito para além dos prejuízos sofridos. Por outro lado, e como já dissemos, essa redução não pode conduzir a um valor muito baixo sob pena de retirar eficácia à cláusula penal.

Posto que se nenhuma das partes aduzir factos que permitam conhecer as concretas qualidades do imóvel, nomeadamente, em termos de utilidades proporcionadas pelas partes comuns e, tão-pouco, o nível sócio económico dos seus comproprietários, resta-nos o bom senso, as regras da experiência comum e as orientações legais acima enunciadas. Em tais termos, afigura-se-nos adequado, partindo da base de €5/mês que foi a vontade expressa dos condóminos, fixar um limite máximo ao cálculo das penalidades, limite este que será igual ao valor da quota em mora.

Dito de outro modo, à deliberação de “ qualquer Condómino que apresente mensalidades em dívida por um período superior a 90 dias, acresce a cada uma das referidas mensalidades uma sanção pecuniária de €5 (cinco euros) mensal até à completa regularização das mesmas” acrescentaremos “ A sanção a aplicar terá como limite máximo um valor igual ao da(s) mensalidade(s) não paga(s)”.

No caso, as quotas não pagas perfazem, em 2010, €220,64; em 2011, perfazem €330,96 e em 2012 perfazem €220,64, o que dá um valor global de €772,24. Logo, a penalidade máxima exigível, segundo a equidade e atendendo à demora no pagamento, corresponde a um valor igual a essas quotas, logo, a €772,24.

09 julho 2024

Omissão de convocação


Tribunal: Relação de Lisboa
Processo: 27942/16.9T8LSB.L2-1
Relator: Eurico Reis
Data: 26 Janeiro 2021

Descritores:
Assembleia de condóminos
Omissão de convocação
Caducidade
Inconstitucionalidade

Sumário:

I. A revogação pelo Tribunal da Relação de Lisboa de um despacho saneador inicialmente proferido com o fundamento de que, não o tendo sido, deveria ter sido proferido despacho concedendo prazo à Autora para corrigir a petição inicial por si apresentada nestes autos, por forma a serem elencados também como réus, para além da Administração do Condomínio, todos os condóminos do prédio constituído em propriedade horizontal e não apenas os que votaram favoravelmente as deliberações tomadas na assembleia geral de condóminos, com a consequentemente determinação de que um tal despacho tinha de ser proferido, não implica necessariamente a anulação ou a declaração sem efeito do processado anterior a esse despacho revogado.

II. E, porque essa anulação ou declaração sem efeito desse processado não foi decretada pelo Tribunal da Relação, uma vez que a Autora tinha apresentado, em tempo oportuno, uma resposta às excepções invocadas na primeira contestação introduzida em Juízo pelo Réu Condomínio, não é nula a decisão que apenas admitiu a segunda resposta da Autora na parte respeitante às novas questões suscitadas na segunda contestação apresentada pelo Réu Condomínio na sequência da nova petição inicial da Autora.


III. A omissão de convocação de um condómino para uma assembleia de condóminos consubstancia uma conduta que é, em termos conceptuais - lógicos e ontológicos -, totalmente inconfundível e distinta de uma deliberação aprovada numa tal assembleia, pelo que o disposto no art.º 1433º do Código Civil, e em particular o que aí se estatuí acerca do prazo de caducidade para intentar uma acção de anulação de deliberações da assembleia de condóminos, não pode aplicar-se à regulação da primeira dessas situações.


IV. E não existindo no Código Civil uma norma que expressamente regule e estabeleça os efeitos de um tal comportamento omissivo (não convocação de um condómino para a assembleia de condóminos), porque o tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio (art.º 8º n.º 1 do Código Civil), forçoso se torna encontrar uma solução jurídica para essa situação litigiosa.


V. Para efeito da construção dessa norma reguladora, é indispensável recordar que, nos termos do disposto no art.º 294º do Código Civil, os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei, tudo isto sendo certo que, por força do estatuído no art.º 295º do mesmo Código, aos actos jurídicos que não sejam negócios jurídicos são aplicáveis, na medida em que a analogia das situações o justifique, as disposições do capítulo precedente, e, sem lugar para qualquer dúvida, a convocação de um condómino para uma assembleia de condóminos é um acto jurídico.


VI. E, para o mesmo efeito, importa também lembrar que, como estabelecem, respectivamente, os nºs 2 e 1 do art.º 280º ainda do Código Civil, também aplicáveis à regulação dos efeitos dos actos jurídicos, cometidos ou omitidos, são nulos os negócios jurídicos contrários à ordem pública, ou ofensivos dos bons costumes, sendo também nulos os negócios jurídicos cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável, não se aplicando aqui a ressalva prevista no art.º 281º («Se apenas o fim do negócio jurídico for contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes, o negócio só é nulo quando o fim for comum a ambas as partes.»), porque, repete-se, o que está em causa nestes autos é um acto jurídico unilateral (apesar de receptício).


VII. É eticamente indefensável e socialmente muito grave omitir um acto com essa dignidade institucional e legal, porque essa não convocação priva um condómino da possibilidade de participar na assembleia defendendo os seus interesses legítimos e os seus direitos, o que constitui uma falha inaceitável nas Sociedades que se organizam segundo o modelo do Estado de Direito (art.º 2º da Constituição da Republica), tanto mais que o direito à propriedade e à iniciativa privadas são direitos fundamentais de todas as pessoas, estando como tal reconhecidos, respectivamente, nos artºs 62º e 61º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e no art.º 17º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adoptada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas através da sua Resolução 217A (III), de 10 de Dezembro de 1948.


VIII. E é exactamente porque esses direitos têm esse mais elevado nível de protecção ética, institucional e legal (constitucional), que a sua violação constitui uma ofensa à ordem pública e aos bons costumes, logo, um abuso de direito.


Texto integral

Vide redacção do acórdão aqui.