Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

12/15/2023

Forma da procuração - V


Em bom rigor, a solução ideal seria a de fazer depender a forma da procuração da finalidade das formalidades exigidas para o negócio principal: nos casos em que esta finalidade consiste apenas em obter prova segura acerca do acto (formalidades ad probationem(42)), a outorga de poderes de representação não careceria da forma prescrita para aquele negócio.(43)

No entanto, a fixação do sentido e alcance da finalidade de cada exigência legal de forma depende da actividade interpretativa, pelo que aquela solução conduziria a incertezas várias.

Nas palavras do legislador: “Em rigor a solução deveria ser a de olhar às finalidades do formalismo requerido para o negócio representativo para decidir da aplicabilidade ou inaplicabilidade de tal formalismo ao negócio de concessão de poderes. Para fugir, contudo, às graves dificuldades e incertezas a que isso daria lugar pareceu-nos melhor estabelecer (…) o princípio geral de que a procuração está sujeita à forma exigida para o negócio a que diz respeito (…), admitindo embora que se estabeleçam, maxime em legislação especial, restrições a este princípio.”(44)

Ora, como as mais das vezes a forma legal é estabelecida ad substantiam(45), a regra vertida no artigo 262.°, n.° 2, do CC parece-nos de grande razoabilidade, a melhor possível.(46)

b) Excepções à equiparação formal entre a procuração e o negócio jurídico representativo: em especial, do artigo 116.° do Código do Notariado

Conforme resulta expressamente da primeira parte do ar-tigo 262.°, n.° 2, do CC (“Salvo disposição legal em contrário”), o princípio da equiparação formal entre o acto concessor de poderes representativos e o negócio que o procurador deva realizar comporta excepções(47).

No presente trabalho, importa-nos analisar a excepção constante do disposto no artigo 116.° do Código do Notariado(48), preceito que estipula:

“1 — As procurações que exijam intervenção notarial podem ser lavradas por instrumento público, por documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura ou por documento autenticado.
2 — As procurações conferidas também no interesse do procurador ou de terceiro devem ser lavradas por instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial.
3 – Os substabelecimentos revestem a forma exigida para as procurações.”(49)(50)

Vale por dizer: a procuração pode ser verbal ou escrita, consoante os negócios a concluir sejam consensuais ou requeiram forma escrita; quando para estes se exija escritura pública, aquela pode assumir a forma de instrumento público, documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura ou por documento autenticado.

Na síntese de Antunes Varela e Pires de Lima, “O n.° 2 [o artigo 262.°, n.° 2, do CC] contém uma regra que, em face dos princípios expressos no artigo 127.° do Código do Notariado [actual artigo 116.° do CN], será seguramente de aplicação pouco frequente quanto a actos em que deva haver intervenção notarial. É, no entanto, uma regra geral de aplicação certa nos casos em que se exija para o acto apenas a forma escrita. Quando assim seja, a procuração deve igualmente ser passada por escrito. Em relação a actos para os quais se não exija sequer a forma escrita valerá a procuração verbal.”(51) (parêntesis e itálico nossos)

Notas:

(42) Nos casos em que a forma da declaração é exigida “apenas para prova da declaração” (cfr. artigo 364.°, n.° 2, do CC), a sua falta não gera a nulidade do acto, mas apenas a dificuldade de prova do acto, a qual é suprível por confissão expressa. No caso de formalidades ad substantiam, atendendo aos relevantes motivos de interesse público subjacentes, a sua inobservância acarretará a nulidade do acto (cfr. artigo 220.° do CC). Sobre a distinção doutrinária entre formalidades ad substantiam e formalidades simplesmente ad probationem, vide Carlos Alberto da Mota Pinto, Ob. cit., págs. 433 e 434, José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, volume II – Acções e Factos Jurídicos, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2003, pág. 69, e Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 545.

(43) Parece ser esta a solução de outros direitos, conforme ensina Vaz Serra: “No direito austríaco, é pela finalidade da disposição de forma que se decide se esta é exigida também para o negócio da outorga de poderes (…), e semelhantemente no direito francês (…), no qual a ratificação pode ser expressa ou tácita, salvo tratando-se de acto solene.” Vide Vaz Serra, “Anotação ao Acórdão…”, cit., pág. 184. Mais recentemente, em relação ao direito gaulês, Maria Helena Brito confirma: “tem-se defendido que, quando a lei exige uma forma solene (por exemplo, intervenção notarial) para o acto que o mandatário deve celebrar em nome do mandante, à mesma forma deve estar sujeito o contrato de mandato, sempre que a exigência legal se destine a proteger uma das partes, pois, a não ser assim, poderia ser iludido o objectivo da lei.” Vide Maria Helena Brito, Ob. cit., pág. 213.

(44) Vide Rui de Alarcão, “Breve Motivação do Anteprojecto sobre o Negócio Jurídico na Parte Relativa ao Erro, Dolo, Coacção, Representação, Condição e Objecto Negocial”, in Boletim do Ministério da Justiça, n.° 138, 1964, pág. 106.

(45) Neste sentido, Carvalho Fernandes: “ A formulação do art. 220.° do C. Civ. sugere que a forma legal é em regra estabelecida ad substantiam.” Vide Luís A. Carvalho Fernandes, Ob. cit., pág. 235. Na mesma linha, Pais de Vasconcelos afirma: “ Em regra as exigências legais de forma são ad substantiam. Esta conclusão retira-se do artigo 220.° do Código Civil que comina, em princípio, com nulidade o desrespeito pela forma exigida por lei.” Vide Pedro Pais de Vasconcelos, Ob. cit., pág. 545. Da análise do artigo 364.° do CC, Mota Pinto extrai idêntica conclusão: “Donde se infere que quaisquer documentos (autênticos ou particulares) serão formalidades «ad probationem», nos casos excepcionais em que resultar claramente da lei que a finalidade tida em vista ao ser formulada certa exigência de forma foi apenas a de obter prova segura acerca do acto e não qualquer das outras finalidades possíveis do formalismo negocial (obrigar as partes a reflexão sobre as consequências do acto, assegurar a reconhecibilidade do acto por terceiros ou o seu controlo no interesse da comunidade, etc.).” (negrito nosso) Vide Carlos Alberto da Mota Pinto, Ob. cit., pág. 434.

(46) Era este o entendimento de Vaz Serra: “ Como, (…) a forma é exigida pela lei normalmente para assegurar a ponderação dos declarantes, a regra será que procuração e a ratificação estão sujeitas à forma prescrita para o negócio a celebrar ou celebrado pelo representante, com as restrições, no nosso direito, resultantes dos artigos 1327.° a 1329.° do Código Civil e do artigo127.° do Código do Notariado.” Vide Vaz Serra, “Anotação…”, cit., pág. 184.

(47) Cfr., por exemplo, artigos 97.°, § 2.°, do Código Comercial, 43.°, n.o 2, do Código do Registo Civil e 39.° do Código do Registo Predial. Sobre este preceito, vide Isabel Pereira Mendes, Código do Registo Predial – Anotado e Comentado com Formulário, 13.ª edição, Almedina, Coimbra, 2003, págs. 215 – 217.

(48) Adiante, abreviadamente identificado por CN.

(49) A norma transcrita em texto corresponde ao artigo 127.° do anterior CN, que dispunha:
“1. As procurações e substabelecimentos que exijam intervenção notarial devem ser lavrados:
a) Por instrumento público;
b) Por documento escrito e assinado pelo mandante, com reconhecimento presencial da letra e assinatura;
c) Por documento escrito por pessoa diversa do mandante e assinado por este, com reconhecimento presencial da assinatura.
2. O mandato judicial, quando não inclua poderes para confissão, desistência ou transacção, pode também ser conferido por documento escrito e assinado pelo constituinte, com reconhecimento da letra e assinatura, ou mediante a assinatura da parte aposta conjuntamente com a do procurador, no respectivo articulado, com reconhecimento presencial da assinatura.
3. O mandato com poderes de livre e geral administração civil ou gerência comercial, para contrair obrigações cambiárias, para fins que impliquem confissão, desistência ou transacção em pleitos judiciais ou a representação em actos que têm de realizar-se por modo autêntico ou para cuja prova é exigido documento autêntico, não pode ser conferido sob a forma prevista na alínea c) do n.° 1.”

(50) Dada a expressa remissão para o artigo 116.° do CN, o artigo 118.° deste diploma constitui igualmente uma excepção à regra geral prevista no artigo 262.°, n.° 2, do CC, ao estabelecer:
“1 – É permitida a representação por meio de procurações e de substabelecimentos que, obedecendo a alguma das formas prescritas no artigo 116.°, sejam transmitidas por via telegráfica ou por telecópia, nos termos legais.
2 – As procurações ou substabelecimentos devem estar devidamente selados.”

(51) Vide Pires de Lima e Antunes Varela (com a colaboração de M. Henrique Mesquita), Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 244.


Forma da procuração - IV



Por outro lado, como afirma Maria Helena Brito, “O acto de atribuição de poderes é também funcional e estruturalmente independente em relação ao negócio jurídico representativo”(36), isto é, há autonomia do poder de representação face ao negócio jurídico celebrado pelo representante e terceiro. Símbolo desta autonomia é o regime vertido no artigo 259.° do CC:

“1. À excepção dos elementos em que tenha sido decisiva a vontade do representado, é na pessoa do representante que deve verificar-se, para efeitos de nulidade ou anulabilidade da declaração, a falta ou vício da vontade, bem como o conhecimento ou ignorância dos factos que podem influir nos efeitos do negócio.
2. Ao representado de má fé não aproveita a boa fé do representante.” (itálico nosso)

Em matéria de forma, porém, a regra do CC, ao impor para a procuração a solenidade exigida ao negócio a realizar pelo procurador (cfr. artigo 262.°), constitui excepção à independência do negócio jurídico atributivo do poder de representação relativamente ao negócio principal.

II - Procuração: da sua forma

a) Regra: igualdade de forma entre a procuração e o negócio jurídico representativo

Tendo em conta a independência da procuração relativamente ao negócio representativo, seria de esperar que, no domínio da forma, a regra para aquela fosse a não exigência da solenidade requerida para este. É esta, aliás, a solução vigente nos ordenamentos jurídicos suíço e germânico (37).

No CC português, a opção, porém, foi diversa, consagrando-se, como regra geral, a sujeição da procuração à forma exigida para o negócio principal(38)(39). Dispõe o artigo 262.°, n.° 2:

“Salvo disposição legal em contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar.”

Na base desta previsão legislativa, parece ter estado o pensamento de Vaz Serra: “Mas, se a procuração não é parte do negócio a realizar pelo representante, não estando por isso, como tal, sujeita às formalidades prescritas para este, pode a razão dessas formalidades compreender o acto pelo qual o interessado atribui poderes de representação a terceiro. (…) Se, por exemplo, com a exigência de formalidades, se pretende assegurar a ponderação do interessado, evitando que levianamente realize o negócio em questão, essa finalidade abrange a procuração, que é o único acto em que se manifesta a vontade do interessado.”(40)

Noutros termos: a ratio subjacente à exigência de forma legal para a conclusão de certos negócios jurídicos (v.g. artigos 875.° e 947, n.° 1, do CC e artigo 80.° do Código do Notariado) obriga à adopção de formalismo idêntico pela procuração atributiva de poderes representativos para a celebração destes negócios. De outro modo, as razões de garantia de ponderação das partes, de publicidade e de segurança jurídica que estão na base da necessidade da observância das solenidades para alguns negócios representativos (ditos formais)(41) não seriam salvaguardadas.

Notas:

(36) Vide Maria Helena Brito, Ob. cit., pág. 124.

(37) Existem, contudo, algumas excepções, legais e jurisprudenciais, ao princípio geral da independência da procuração relativamente ao negócio representativo no domínio da forma, consagrado nos direitos alemão e helvético. Assim, a título de exemplo, “ a jurisprudência do Bundesgericht esclarece que, no caso de o negócio representativo estar sujeito a forma autêntica, a «vontade de representar» do representante deve ser declarada sob a mesma forma.” e a doutrina suíça “informa que o princípio da independência da procuração relativamente ao negócio representativo é em parte contrariado pelos responsáveis pelo registo predial, ao exigirem procuração escrita relativamente aos actos de transferência de propriedade, e que numerosos cantões subordinam a validade dos actos à autenticação da assinatura do autor.” Vide Maria Helena Brito, Ob. cit., pág. 107.

(38) Em Itália, a simetria formal entre negócio – base e procuração foi também acolhida no CC (artigo 1392.°). Para a indicação da doutrina italiana mais relevante sobre esta questão, vide Pedro de Albuquerque, Ob. cit., pág. 1037.

(39) Nos termos do artigo 268.°, n.° 2, primeira parte, do CC, também “ a ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração”.

(40) Vide Vaz Serra, “ Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 24-05-1960 (Vaz Pereira)”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 94, 1961-1962, pág. 184.

(41) Segundo Menezes Cordeiro, as razões de solenidade, de reflexão e de prova, tradicionalmente apontadas como estando na base da forma negocial legalmente exigida “assumem (…) tão-só, uma consistência de tipo histórico: elas [as justificações de determinadas exigências de forma] terão levado o legislador ou, mais latamente, o Direito, a prescrevê-las.” (parêntesis nosso) Vide Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, cit., pág. 569.