Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

3/28/2022

Deliberações ineficazes

As deliberações da assembleia de condóminos são susceptíveis de enfermar dos vícios da anulabilidade, da nulidade, da ineficácia e da inexistência. No presente escrito, debruço-me sobre as deliberações ineficazes.

Nos termos do art. 1433ç, nº 1 do CC, as deliberações da assembleia contrárias à lei ou ao regulamento anteriormente aprovados são anuláveis a requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado, A sanção cominada é, portanto, a anulabilidade das deliberações. A lei não se refere às deliberações nulas, nem às ineficazesm que seguem o regime geral. Temos assim, em matéria das deliberações da assembleia dos condóminos, de distinguir os vícios que ferem as deliberações de nulidade daquelas que as enfermam de anulabilidade: estas últimas são sanáveis com deliberações sucessivas e a invalidade deve ser feita valer no prazo estabelecido pelo art. 1433º do CC.

São ineficazes as deliberações lesivas, que suprimam ou quartem direitos especiais protegidos por lei dos condóminos sem o consentimento dos respectivos titulares, nomeadamente, na aprovação do regulamento do condomínio, disciplinando o uso, fruição e conservação, quer das partes comuns, quer das fracções autónomas; na proibição dos condóminos poderem ter animais de estimação, nomeadamente, canídeos ou felídeos no interior das respectivas fracções autónomas, ou na afectação exclusiva de partes comuns a um ou a alguns condóminos.

É também ineficaz a deliberação da assembleia de condóminos que versa sobre assuntos sobre os quais a assembleia não tem competência, designadamente porque dizem respeito à propriedade individual ou própria de qualquer proprietário ou porque representam ou extravasam o domínio da administração individual que qualquer condómino tem sobre a sua fracção autónoma. 

É ainda ineficaz deliberação da assembleia de condóminos que decida afectar as receitas resultantes do contrato de cessão de espaço a empresa de telecomunicações – na parte em que proporcionalmente pertencem aos autores - ao pagamento de quotizações, ordinárias e/ou extraordinárias de que os autores sejam devedores, prescindindo do assentimento destes.
 
 
Desde que os autores não ratifiquem tal deliberação, os mesmos podem arguir, a todo o tempo, o vício de que ela enferma, ou por via de excepção, ou através de uma acção meramente declarativa. 

Refere Sandra PASSINHAS, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 2ª ed., pp. 250-251, “nos termos do artigo 1433º, nº 1, as deliberações da assembleia contrárias à lei ou a regulamentos anteriores aprovados são anuláveis a requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado. A sanção cominada é, portanto, a anulabilidade das deliberações. A lei não se refere às deliberações nulas, nem às ineficazes, que seguem o regime geral. Temos assim em matéria das deliberações da assembleia de condóminos, de distinguir os vícios que enfermam as deliberações de nulidade daqueles que as enfermam de anulabilidade: estas últimas são sanáveis com deliberações sucessivas e a invalidade deve ser feita valer no prazo estabelecido pelo artigo 1433º, sob pena de decadência”.

Por sua vez, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., p. 448, afirmam: «Quando a Assembleia infrinja normas de interesse e ordem pública (suponha, por. ex., que a assembleia autoriza a divisão entre os condóminos de alguma daquelas partes do edifício que o nº 1 do art. 1421º considera forçosamente comuns; que suprime, por maioria, o direito conferido pelo nº1 do art. 1428º; que elimina a faculdade, atribuída pelo art. 1427º a qualquer condómino, de proceder a reparações indispensáveis e urgentes nas partes comuns do edifício; que suprime o recurso dos atos do administrador a que alude o art. 1438º; ou que dispensa o seguro do edifício contra o risco de incêndio, diversamente do que se dispõe no nº1 do art. 1429º), as deliberações tomadas devem ser consideradas nulas, e como tais, impugnáveis a todo o tempo e por qualquer interessado, nos termos do art. 286º. Se assim não fosse, estaria na mão dos condóminos derrogar os preceitos em causa (…)

Quando a assembleia se pronuncie sobre assuntos para que não tenha competência (tal será o caso em que, por exemplo, a assembleia sujeite ao regime das coisas comuns, sem o consentimento do respeptivo titular, uma parte do prédo pertencente em propriedade exclusiva a um dos condóminos), a deliberação deve considerar-se ineficaz: desde que a não ratifique, o condómino afectado a todo o tempo pode arguir o vício de que ela enferma, ou por via de excepção, ou através de uma acção meramente declarativa. E este é, sem dúvida, o regime mais aconselhável: seria violento, com efeito, obrigar o condómino afectado a propor num curto prazo, e sob pena de convalidação do ato, uma acção anulatória de uma deliberação tomada sobre assunto estranho à esfera de competência da assembleia. De resto, a sanção da ineficácia é a que a lei comina para os actos praticados por um representante sem poderes (art. 268º, nº1), e as duas situações são em tudo análogas: em qualquer dos casos faltam ao autor ou autores do comportamento negocial os poderes necessários para interferir na esfera jurídica de outrem (…)».
 
Ainda a este propósito, Vítor Fernandes Rodrigues, Prédio Urbano em Regime de Propriedade Horizontal. Os Direitos e Deveres dos Condóminos, 2013, pp. 73-74, sistematiza assim os vícios das deliberações das assembleias de condóminos: «As deliberações podem ser nulas, ineficazes e anuláveis. Ou seja, o art. 1433º, nº 1 do CC, declara anuláveis as deliberações da assembleia contrárias à lei ou a regulamentos anteriormente aprovados. Ao passo que o nº 2 do artigo citado, faculta aos condóminos presentes que votaram contra e aos condóminos ausentes a possibilidade de exigirem ao administrador a convocação de uma assembleia extraordinária para revogação das deliberações inválidas ou ineficazes.

Assim, são nulas as deliberações tomadas em reunião dos condóminos que infrinjam normas de carácter imperativo, por visarem a prossecução de interesses indisponíveis e de ordem pública, como exemplo as deliberações que violem o art. 1421º, 1422º do CC entre outros.

A deliberação cujo conteúdo colida com a norma imperativa é nula. Em caso de nulidade este vício poderá ser suscitado por qualquer interessado, condómino ou não, sem dependência do prazo (cfr. art. 286º do CC). Deste modo, são anuláveis as deliberações da assembleia que, recaindo sobre o objecto que são da sua competência, incidam sobre as partes comuns do condomínio, ou seja, as normas que violem preceitos da lei material ou procedimental aplicáveis a regulamentos que se encontram em vigor.

Em conjunto das deliberações nulas e anuláveis temos ainda as deliberações ineficazes, cujo objecto dos assuntos excedem a esfera da competência da assembleia dos condóminos, seja porque dizem respeito à propriedade individual ou própria de qualquer proprietário, seja porque representam ou extravasam o domínio da administração individual que qualquer condómino tem sobre a sua fracção autónoma.

Também serão ineficazes, por exemplo, as deliberações que admitem aos condóminos o direito de preferência na alienação de outras fracções (cfr. art. 1423º do CC); as que autorizem inovações nas partes comuns do edifício que lesem a utilização, por parte de algum dos condóminos tanto das coisas próprias como as das comuns (cfr. art. 1425º, nº 2 do CC); as privem um condómino do uso privativo de uma coisa, como tal considerada no título constitutivo da propriedade horizontal; as que exijam obstar a que um condómino dê à sua fracção qualquer utilização lícita, desde que o título constitutivo não conste o fim específico a que a mesma se destina; as que sujeitam ao regime das coisas comuns, sem ou contra a vontade do respeptivo titular, uma parte do prédio, pertencente em exclusividade a um condómino, ainda que se trate de uma parte secundária da habitação, como seja, por ex., uma arrecadação ou arrumo, em lugar de parqueamento ou uma garagem.» 

A nossa lei não tem nenhuma cláusula expressa que permita ao juiz decidir segundo a equidade. Vide a Ley sobre Propriedad Horizontal que, no seu art. 18º, estabelece que os condóminos que representem pelo menos a quarta parte das quotas de participação podem recorrer ao juiz, que decidirá segundo a equidade, quando considerem que a decisão da maioria lhes é gravemente prejudicial. Também o Codice permite que as deliberações sejam impugnadas por "abuso de poder", isto é, quando se  mostrem gravemente prejudiciais à coisa comum (cfr. art. 1109º, nº 1, ex vi art. 1139º).
 
De resto, a sanção da ineficácia é a que a lei comina para os actos praticados por um representante sem poderes (cfr. art. 268º, nº 1), e as duas situações são em tudo análogas: em qualquer dos casos faltam ao autor ou autores do comportamento negocial os poderes necessários para interferir na esfera jurídica de outrem (…)».

Deliberações nulas

As deliberações da assembleia de condóminos são susceptíveis de enfermar dos vícios da anulabilidade, da nulidade, da ineficácia e da inexistência. No presente escrito, debruço-me sobre as deliberações nulas.

Quando a assembleia infrinja normas de interesse e ordem pública, as deliberações tomadas devem considerar-se nulas e, como tal, impugnáveis a todo o tempo e por qualquer interessado nos termos do art, 286º CC. Se assim não fosse, estaria nas mãos dos condóminos derrogar os preceitos em causa; bastaria que, após a aprovação das deliberações, nenhum deles as impugnasse. Por exemplo, a assembleia poderia autorizar a divisão das partes necessariamente comuns do edifício (cfr. art. 1421º, nº 1 CC) ou, desrespeitando o art. 1429º, poderia dispensar o seguro contra o risco de incêndio ou suprimir o recurso dos actos do administrador, apesar do disposto no art. 1438º do CC.

Se a anulabilidade fosse aplicável a todas as deliberações desconformes com os preceitos legais, isso significaria estar nas mãos dos condóminos a produção de quaisquer efeitos jurídicos através de deliberações da assembleia, efeitos esses que estabilizariam, caso nenhum condómino viesse a impugnar judicialmente o acto em causa, dentro do curto preza estabelecido (cfr. para as sociedades, Lobo Xavier, Anulação de deliberação social e deliberações conexas, Atlântida Editora, Coimbra, 1975).

"Deveria falar-se de nulidade de um negócio jurídico sempre que se esteja em face de um negócio efectado por um vício genético que o torne inapto para a produção dos efeitos a que se destina, de tal forma que essa produção seja automaticamente excluída, em regra desde o início e de modo absoluto e insanável. Por sua vez, dir-se-á anulável o negócio afectado por um vício genético que o priva, em regra retroactivamente, dos efeitos a que se destina, se a pessoa ou pessoas para tanto legitimadas obtiverem nesse sentido uma decisão judicial ou o acordo da contraparte (cfr. Rui de Alarcão, Sobre a invalidade do negócio jurídico, Separata do BFD, Coimbra, 1981, pág. 18).

São nulas as deliberações que violem normas gerais imperativas, nomeadamente, são nulas as deliberações cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável (cfr. art. 280º CC). A deliberação tem de ser clara e determinada, sob pena de nulidade (cfr. Weitnauer, Kommentar, 8ª edição, Verlah Franz Vahlen, Munique, 1994).

São assim nulas, nos termos dos art. 286º e 287º do CC, e como tais, impugnáveis a todo o tempo por qualquer interessado, as deliberações que colocarem em causa o conteúdo de normas imperativas, a saber, as normas que tutelam directamente o interesse público ou que estabelecem tutela autónoma de terceiros, enquanto preceitos da lei de natureza imperativa, cuja violação dá origem à nulidade da deliberação, nomeadamente os art. 1421º, nº 1, 1422º, nº 2, 1423º, 1427º, nº 1, 1428º, nº 1, 1429º, 1432º, nº 3 e nº 4, 1435º, nº 1, 1437º e 1438º, todos do CC.

Segundo Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora, 1987, 2ª Edição Revista e Actualizada, pág. 448), “quando a assembleia infrinja normas de interesse e ordem pública (suponha-se, por ex., que a assembleia autoriza a divisão entre os condóminos de alguma daquelas partes do edifício que o nº 1 do art. 1421º considera forçosamente comuns; que suprime, por maioria, o direito conferido pelo nº 1 do art. 1428º; que elimina a faculdade, atribuída pelo art. 1427º a qualquer condómino, de proceder a reparações indispensáveis e urgentes nas partes comuns do edifício; que suprime o recurso dos actos do administrador a que alude o art. 1438º; ou que dispensa o seguro do edifício contra o risco de incêndio, diversamente do que se dispõe no nº 1 do art. 1429º), as deliberações tomadas devem considerar-se nulas, e como tais, impugnáveis a todo o tempo e por qualquer interessado, nos termos do artigo 286º”.

Conhecer os preceitos da lei cuja violação dá origem à nulidade da deliberação e um problema de interpretação sistemática-normativa. Pertencem necessariamente ao conjunto dos precitos em causa as normas que tutelam directamente o interesse público ou que estabelecem tutela autónoma de terceiros.

Na medida em que a lei não remeta para o exame do regulamento ou das deliberações da assembleia dos condóminos, deve o futuro adquirente de uma fracção autónoma poder confiar em que a regulamentação legal governará, efectivamente, o condomínio, ficando desonerado de mais averiguações. Isto não significa que se não possam julgar nulas as deliberações quando a ilegalidade do seu conteúdo não se traduza na ofensa de disposições legais expressas. Assim, por exemplo, conquanto a lei não o diga expressamente, é evidente que ao titular do direito de voto cabe igualmente o direito de discutir os assuntos sobre os quais irá deliberar a assembleia. Ora, é nula a deliberação que, com vista a assembleias, ulteriores, suprima o último direito mencionado.

Quanto às regras legais destinadas a proteger directamente os condóminos, e não terceiros ou o interesse público, o tema da nulidade levanta alguns problemas delicados. Só quando a violação das normas mencionadas em último lugar se traduz no conteúdo da deliberação, id est, quando fixa disciplina oposta à que aquelas prevêem, poderá o acto julgar-se nulo. Pois por esta via é susceptível de ser afectada a posição dos futuros condóminos, cujos interesses os preceitos em causa pretendem salvaguardar.

É necessário que o acto tenda a criar uma situação com um certo carácter de permanência - o que desde logo sucede com as deliberações que alteram o regulamento do condomínio. Há, ainda, normas endereçadas à tutela dos condóminos que excluem absolutamente a eficácia das deliberações que estabeleçam ma disciplina com elas constante, seja qual for a duração prevista para a referida disciplina. O legislador quis garantir a funcionalidade do condomínio, ligada a considerações de justiça material.

Deste jeito, a deliberação que, pelo seu conteúdo, viola tais normas, deve julgar-se nula, ao menos por contrariar aquela esquema mínimo de organização do condomínio que corresponde às exigências mínimas do legislador - designadamente quanto à salvaguarda da posição individual de cada condómino no âmbito da colectividade - ou, enfim, por não servir quaisquer interesses merecedores de tutela jurídica. Referimo-nos, verbi gratia, aos art. 1429º, nº 1, al. a), 1430º, nº 1 e 2 e 1435º do CC.