Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

5/03/2024

Finalidades das fracções autónomas


O art. 1º do DL nº 40 333 prescrevia que as fracções autónomas do edifício em propriedade horizontal seriam destinadas a fins habitacionais, de actividades económicas, ou semelhantes, e de idêntica forma se exprimiam o anteprojecto e a 1ª revisão ministerial.

O texto do Código não contém, contudo, qualquer referência aos fins a que se destinam as fracções autónomas, certamente porque a teve como desnecessária.

E, com efeito, assim é.

A enumeração desses fins, que a lei anterior se fazia era apenas exemplificativa como, sem lugar a dúvidas, inculcava a expressão "e semelhantes", usada no final do respectivo preceito. Daí se concluir que a fracção autónoma poderia ser destinada a qualquer fim lícito sendo, portanto, desnecessária qualquer referência na lei ao respectivo fim, o que só é exigível no título constitutivo (cfr. art. 1418º/2, al. a)).

O essencial é fixar é que a fracção a ser objecto de propriedade horizontal tem de constituir uma unidade independente - e a isso se limitou, portanto, a formulação do processo.

Evidente é, porém, que essa independência terá de ser apreciada caso por caso, em função da finalidade específica a que a fracção deverá ficar afectada, mas que, em geral, se traduz na possibilidade de essa fracção proporcionar, por si só, os requisitos indispensáveis à sua utilização funcional.

Cunha Gonçalves combateu a designação "fracção autónoma" no seu livro "Da propriedade horizontal ou por andares", nos seguintes termos: "A expressão fracção autónoma, salvo ainda o devido respeito, parece-nos assaz incorrecta, porque a autonomia é conferida às pessoas ou colectividades e não às coisas ou parte delas. Autónoma (que provém do grego autos, por si, e nomos, regra(, significa que certa entidade se rege por leis ou regras próprias. Compreende-se que se diga e escreva distrito autónomo, junta autónoma, administração autónoma, mas seria estranho erro de semântica e incorrecto dizer: ilha autónoma, porto autónomo, palácio autónomo, prédio autónomo, terraço autónomo, janela autónoma, cadeira ou mesa autónoma, por mais distintas e individualizadas que estas coisas sejam, não se governam por leis próprias. Preferível seria usar o termo "apartamento".

E mais adiante diz que "fracção autónoma" é o mesmo que outras legislações, inclusivé a nacional Lei nº 2030, e a doutrina dos jurisconsultos internacionais, mais exacta e expressivamente, designam por pisos, pavimentos, andares, planos ou apartamentos. Estes andares (étages, flooors, piani) pisos ou apartamentos não são nem fracções, nem autónomas. Não são fracções, porque não são restos do que já foi inteiro, não são quebrados aritméticos, não têm numerador e denominador; são números dígitos ou inteiros, são unidades, embora mais pequenas do que o edifício de que fazem parte. Não são autónomas, porque, como já dissemos atrás e insistimos, as coisas não têm autonomia, que só pessoas físicas ou colectivas podem desfrutar".

A transcrição foi longa mas necessária para tornar evidente como a argumentação do ilustre Autor era apenas um simples e injustificado jogo de palavras que, todavia, a si próprio se nega.

Com efeito, uma fracção não é aquilo que o Autor apontava, circunscrevendo-se incompreensivelmente a uma linguagem matemática. Fracção é, também - di-lo qualquer bom dicionário - "parte de um todo ou de uma unidade" (1). Deste modo, se os andares, pisos, apartamentos ou como se lhes queira chamar, são, no dizer daquele próprio Autor, "unidades, embora mais pequenas do que o edifício de que fazem parte" - admitindo, assim, a existência de unidades mais pequenas numa unidade maior - não vemos como se possa negar a essas unidades "mais pequenas", que são, sem dúvida, parte da unidade "maior" que é todo o prédio, a designação de fracções.

Por outro lado, autónomo não tem apenas o significado resultante da sua etimologia, mas o que entrou na linguagem corrente, justificado, aliás, por aquela. Assim, também qualquer bom dicionário ensina que esta palavra, além do mais, significa "que não depende de outro ou outrem", "que se governa por leis próprias", "que goza de organização individual" (2), sendo, portanto, justificado o uso de tal vocábulo para qualificar as diferentes partes de um edifício em propriedade horizontal.

Correcta é, pois, a expressão "fracção autónoma", mantida na lei para individualizar a parte do edifício que pode ser utilizada, para os fins que lhe foram assinalados, sem dependência de qualquer das outras que completem a mesma construção e é, por isso, susceptível de se tornar objecto de propriedade singular.(3)

Notas:

(1) "Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa", de Artur Bivar, vol. I, pág. 1541. "Grande Dicionário da Língua Portuguesa", de José Pedro Machado. Ed. Amigos do Livro, tomo V, pág. 269.

(2) "Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa", de Artur Bivar, vol. I, pág. 387. "Grande Dicionário da Língua Portuguesa", de José Pedro Machado. Ed. Amigos do Livro, tomo II, pág. 150.
 
(3) "Os caracteres fundamentais do regime jurídico da vulgarmente chamada propriedade horizontal", escreveu-se no preâmbulo do DL nº 40 333, "são dados pela verificação cumulativa das seguintes circunstâncias:
a) A existência de várias propriedades singulares sobre as diversas fracções em que o prédio se subdivide;
b) A articulação de todas as fracções num todo ou unidade, que é o edifício;
c) A existência de bens comuns aos diversos proprietário,"
 

5/02/2024

Responsabilidade contratual e extracontratual de empreiteiro


Acórdão: TRP
Processo nº : DY162596872PT
Relator: Eugénia Cunha
Data: 04/05/2022

Sumário:

I - Não cumpre os ónus da impugnação da decisão da matéria de facto, com a, inerente, consequência da imediata rejeição do recurso, nessa parte, a recorrente que se limita a impugnar em termos latos, genéricos e em bloco sem fazer concreta, especificada e contextualizada análise crítica das provas que impõem decisão diversa de cada questão de facto impugnada (v. nº1, al. b) e nº2, al. a), do art. 640º, do CPC).
II - A responsabilidade civil comporta a contratual (obrigacional), fundada em violação do contrato (falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, estando em causa a violação de direitos de crédito ou de obrigações em sentido técnico, nelas se incluindo não só os deveres primários de prestação, mas também deveres secundários e pode resultar do não cumprimento de deveres principais/essenciais ou de deveres acessórios/secundários) e a extracontratual (delitual/aquiliana) que emerge não de violação de contratos mas sim da violação de normas que impõem deveres de ordem geral e correlativamente de direitos absolutos do lesado (violação de normas gerais que tutelam interesses alheios, de deveres genéricos de respeito).
III - É violadora de obrigação concretamente assumida, logo se desenhando, por isso, ilicitude contratual, a qual sempre, inevitavelmente, decorreria do próprio princípio da boa fé no cumprimento das obrigações (nº2, do art. 762º), a atuação da empreiteira que estando obrigada à vigilância do andaime que colocou na fachada do prédio, para reabilitação desta, por efetiva vigilância ao mesmo não executar, facilitando a entrada, pelas janelas, dos desconhecidos que se apropriaram de bens dos Autores, entrando, para o efeito, nas suas habitações, no 2º, 6º e 9º andares, e a saída dos mesmos pelos andaimes com os objetos de que se apropriaram, incorrendo em responsabilidade contratual por violação de deveres contratuais, quer principais quer secundários e acessórios de conduta, como o de proteção e de consideração pelos interesses dos condóminos, por si colocados em situação de maior vulnerabilidade e expostos a perigos.

Texto integral: Vide aqui